Especialistas alertam sobre risco de antecipação do calendário de vacinação, sem que as duas doses tenham sido aplicadas em quem mais precisa
Das vacinas atualmente utilizadas no Brasil contra a covid-19, todas demandam mais de uma dose. Alguns estados do país estão anunciando a antecipação da vacina para novos grupos, sem ter concluído a imunização dos chamados grupos prioritários. Atualmente, um em cada cinco dos brasileiros com mais de 70 anos não recebeu a segunda dose da vacina. São 2,6 milhões os que começaram só tomaram a primeira. “Na prática, 3,6 milhões de brasileiros com mais de 70 anos não estão completamente imunizados contra covid-19 no país, já que cerca de 1 milhão não tomaram nem a primeira dose.” A constatação é dos pesquisadores Sabine Righetti e Estêvão Gamba, em artigo no UOL, depois de analisarem dados do DataSUS, o sistema de informações do Ministério da Saúde.
Essa situação, como afirmam os especialistas, pode ser um risco. O médico e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, por exemplo, considera os anúncios de antecipação do calendário da vacina contra covid-19 uma notícia boa para quem espera para tomar sua primeira dose. “Mas, sem aumento da produção da vacina, pode ser uma notícia ruim para a população como um todo. Isso se antecipação ocorre porque muita gente não foi tomar a segunda dose, porque muita gente nem sequer tomou a primeira dose”, explica. Por isso, Padilha considera importante que se faça fazer uma “busca ativa” dos que ainda não se vacinaram. “É possível e tem de ser feito. Ir atrás com agentes de saúde, campanhas publicitárias, orientações nas cidades”, ressalta.
Sabine Righetti também avalia que seria mais importante correr atrás de quem não se vacinou ainda nos grupos prioritários e quem abandonou o processo vacinal. “Mas anunciar adiantamento da vacina parece bem mais pop do que assumir que ficou gente pra trás”, observa em sua conta no Twitter
Domingo legal
Foi o que fez o governador do estado de São Paulo, João Doria (PSDB), no último domingo (13). Mas sem informar se a antecipação do calendário utilizaria doses das vacinas não aplicadas ao grupo prioritário. A reportagem da RBA entrou em contato com o governo de São Paulo, mas não obteve respostas ao tentar esclarecer: 1) se a antecipação se valerá de imunizantes que deixaram de ser utilizados em integrantes de grupos prioritários que não compareceram para a primeira ou na segunda dose; 2) se utiliza estoques que estariam destinados a uma segunda dose mais adiante. Por meio da assessoria, o governo “sugeriu” à reportagem assistir à entrevista coletiva de ontem (13) informando que as respostas estariam lá. Mas não estão.
De acordo com o governador, até 15 de setembro os residentes em São Paulo estarão vacinados com a primeira dose. Essa antecipação, segundo o governador, abrangerá mais de 7,45 milhões de pessoas entre 40 anos e 59 anos que entram no programa de vacinação em junho. “São Paulo será o primeiro estado a imunizar totalmente sua população”, disse Doria. Entretanto, a entrevista não explica de onde virão as vacinas que asseguram essa antecipação de calendário. O estado tem 35 milhões de pessoas elegíveis para a vacinação e até hoje vacinou 12,88% com as duas doses.
Para efeito de comparação, no Maranhão, 11,4% da população está vacinada com as duas doses. O governo de Flávio Dino (PCdoB) explica que a antecipação do calendário de vacinação será viabilizada pela aplicação de 300 mil doses extras solicitadas ao Ministério da Saúde, para fazer frente às novas cepas do vírus, surgidas no estado.
Estratégia de risco
Segundo a coordenadora-geral do programa estadual de imunização em São Paulo, Regiane de Paula, o avanço no estado é planejado com base em remessas de vacinas “previstas” pelo Programa Nacional de Imunização. Ela relatou, ainda, que 400 mil pessoas não tomaram a segunda dose.
O médico sanitarista Arthur Chioro acredita que a estratégia de utilização da segunda dose da vacina AstraZeneca e Pfizer seria a principal explicação para a antecipação do calendário vacinal contra a covid-19 em São Paulo. E a considera muito arriscada, já que pressupõe que o governo federal vai honrar o calendário de distribuição, o que até aqui não tem ocorrido.
“Creio que é a estratégia utilizada por alguns gestores municipais, tornada agora oficial pelo governo do Estado de São Paulo”, disse Chioro, destacando que os municípios paulistas são bem organizados e rapidamente conseguem oferecer a vacina. “A logística de distribuição em São Paulo é bem menos complexa do que a que ocorre em outros estados com maiores dificuldades de acesso por estradas, como acontece na região amazônica, pantaneira, agreste, entre outras.”
A lógica, segundo ele, que é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), seria garantir uma reserva para dar a segunda dose para os que tomaram a primeira. “Eles resolveram não manter estoque, usando as D2 para ampliar a vacinação dos paulistas com pelo menos uma dose. Isso é bastante arriscado, considerando o contexto de irregularidade e insegurança por parte do Ministério da Saúde.”
Perda de cobertura
O médico infectologista Caio Rosenthal classifica a antecipação da vacina divulgada pelo governo de São Paulo como jogada política. “Estão jogando com a sorte. Não há garantia de que vai ter a segunda dose para todo mundo. Como nesse momento está havendo a primeira dose em quantidade razoável, estão fazendo uma divulgação arriscada dizendo que todos serão imunizados”, afirma, lembrando que entre as pessoas de 80 anos ou mais falta vacinar 25% com a segunda dose. Dos 70 anos aos 79 anos são 22% e entre os 60 anos aos 69 anos o número chega a 70%.
Os pesquisadores Sabine Righetti e Estêvão Gamba alertam: A esperada vacina para covid-19 pode não ter resultado no Brasil se o país seguir as tendências atuais de imunização, com aumento do abandono entre doses e perda da cobertura vacinal. “Em cinco meses de campanha, só temos 12% da população completamente vacinada. Mas a fila tá super andando em vários estados. Problema: se deixarmos grandes buracos na vacinação da população nunca chegaremos na imunidade observada no estudo de Serrana”, exemplifica Righetti.
A preocupação é a mesma de Padilha. “É possível ir antecipando a vacinação de outros grupos para aproveitar as vacinas. Mas fato concreto é que a gente não vê nenhuma campanha consistente, permanente, por parte do Ministério da Saúde, em conjunto com as secretarias estaduais e municipais, para levar as pessoas a se vacinarem. E as equipes de saúde da família estão no momento mais frágil desde o início da história da sua criação, porque o governo federal não estimula mais, nem protege mais as equipes de saúde da família do nosso país”, lembra. Essas equipes foram fundamentais em campanhas de vacinação como a contra o H1N1. “Aquelas equipes que podiam ir lá, fazer a busca ativa, identificar quem não tomou a segunda dose, as pessoas que não tomaram a primeira dose ainda. Essas equipes estão enfraquecidas, reduziram sua capacidade de atuação diante da política do governo federal.”
Atualmente, segundo dados do consórcio de veículos da imprensa comercial, a primeira dose da vacina contra covid-19 foi aplicada em 25,79% da população brasileira. E a segunda em apenas 11,17%.
Fonte: Rede Brasil Atual