Campanha pelo “desmonte” consolida sistema tributário injusto e excludente, por Lauro Veiga Filho

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Na prática, com a demanda doméstica retraída e reduzidíssima propensão para investir no lado privado, esses cortes tenderiam a deprimir ainda mais a atividade econômica

por Lauro Veiga Filho

As elites brasileiras alcançaram um “êxito considerável”, ao longo de décadas, ao tornar hegemônico o “discurso da carga tributária excessiva”, como manobra para ocultar o caráter injusto e excludente do sistema tributário, mantendo inalterada a baixíssima cobrança de impostos dos muito ricos, preservando privilégios e níveis de concentração da renda inaceitáveis. A observação está, mais uma vez, em detalhado trabalho desenvolvido por David Deccache, doutorando em economia pela Universidade Nacional de Brasília e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em economia da Universidade Federal Fluminense, e Lucas Di Candia, professor substituto do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense.

O estudo mostra que a carga tributária brasileira é inferior ou muito próxima à de países hoje desenvolvidos quando se encontravam na fase inicial de construção de seus Estados de bem-estar social e sustentavam renda per capita média semelhante à do Brasil atual. Apenas para reforçar, por volta do final dos anos 1960 e começo da década seguinte, quando sua renda média por habitante rondava a casa dos US$ 14,8 mil, França, Alemanha, Reino Unido, Finlândia e Noruega apresentavam carga tributária, pela ordem, de 33,8%, 32,2%, 33,4%, 32,8% e 33,3% do Produto Interno Bruto (PIB). O Brasil, com a mesma renda média per capita, registrava uma carga bruta total de impostos em torno de 32,4% do PIB.

O mesmo discurso move ministros, assessores, economistas e comentaristas, numa espécie de “pensamento único”, em sua campanha incansável de desmonte do Estado. A retórica aponta persistentemente que o Estado é muito grande, porque cobra dos cidadãos impostos que representam praticamente um terço ou pouco mais de todas as riquezas geradas pelo lado real da economia (como se o setor público não fizesse parte da economia) e não oferece o retorno esperado em serviços de qualidade. Em resumo, como a “turma do desmonte” gosta de afirmar, o Estado arrecada demais e gasta mal.

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A ideia, portanto, é enxugar o tamanho do Estado, preferencialmente com achatamento de despesas, como se assim fosse possível melhorar a qualidade dos serviços públicos e, numa outra face desse pensamento mágico, atrair investimentos privados e promover o crescimento. Na prática, com a demanda doméstica retraída e reduzidíssima propensão para investir no lado privado, esses cortes tenderiam a deprimir ainda mais a atividade econômica, num momento já de grave depressão por conta da pandemia. Mas nem mesmo parece verdadeiro o pretexto central de toda essa argumentação supostamente “liberal”. O Brasil, na verdade, apresenta uma carga tributária muito próxima à dos demais países “de porte econômico semelhante”, mostram Deccache e Di Candia, percepção “ainda mais forte” quando se considera a chamada carga tributária líquida, como se poderá observar a seguir.

A carga de tributos líquida exclui todos os recursos repassados diretamente ao cidadão pelo Estado, na forma de transferências de renda, a exemplo de pensões e aposentadorias, programas sociais como Bolsa Família e outros benefícios, assim como seguro desemprego e saques de recursos do PIS/Pasep e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Também são descontados os subsídios concedidos pelo Estado ao setor privado, embutidos no crédito para o setor habitacional, para a agricultura e para a indústria.

Segundo dados da Receita Federal, mostram Deccache e Di Candia, depois de todos os descontos, o Estado de fato se apropriava, nos dados de 2017, de 14,4% do PIB, abrindo mão ou repassando para aposentados, pensionistas, famílias mais pobres e miseráveis, assim como para empresas e produtores rurais, algo como 18,1% do PIB. Quer dizer, proporcionalmente, o Estado brasileiro devolve aos cidadãos uma fatia dos impostos e contribuições quase um quarto maior do que a arrecadação que fica de fato disponível para manter todo o setor público funcionando, prover recursos para saúde, educação, segurança, entre outros setores, e ainda bancar investimentos em infraestrutura e nas demais áreas.Leia também:  Neoliberalismo e planejamento predatório, por Maister F. da Silva

“Mais com menos”

Essa diferença entre a carga bruta e a líquida (18,1% no caso brasileiro), demonstra a dupla de economistas, é bem maior do que a diferença observada em outros países. Conforme dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), essa diferença chega a 12,6% nos Estados Unidos, sobe para 16,8% no caso de Portugal, gira em torno de 12,1% no Japão, 3,6% na Coreia do Sul e apenas 1,7% no Chile – o que se explica principalmente pelo fato de a Previdência por lá ser inteiramente privada. “Isto mostra que o valor do retorno dos tributos em porcentagem do PIB, observado no Brasil, é superior a grande maioria dos países ao redor do mundo”, sustentam Deccache e Di Candia. Vale dizer, o Estado brasileiro já faz “mais com menos”, como defendem os “ultraliberais”.

Adicionalmente, prosseguem os economistas, numa comparação internacional, a carga líquida de impostos no Brasil aparece como a segunda mais baixa numa amostragem que considera a mesma relação em 13 países. Apenas os EUA apresentam carga líquida menor, na faixa de 13,8% do PIB. Em Portugal e no Chile, a relação varia de 17,7% a 19,0%, atingindo 20,4% na Espanha, 21,7% na Coreia do Sul e 26,6% na França.

Se a carga líquida representa, “em última instância”, o que resta de recursos em relação ao PIB para financiar a prestação de serviços públicos, argumentam Deccache e Di Candia, talvez devessem ser excluídos também os gastos com o serviço da dívida pública. Em 2017, por exemplo, essa despesa representou 6,11% do PIB. Quando descontado esse percentual, a carga líquida aproxima-se de 8,29% do PIB. Quer dizer, o setor financeiro apropria-se de 42% da carga de tributos líquidos ou quase 19% da carga total bruta

FONTE: GGN
FOTO: REPRODUÇÃO