Como vivem as pessoas trans na Índia, onde o “terceiro gênero” é reconhecido por lei

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Decisão da Suprema Corte não erradicou a transfobia; gays, lésbicas e bissexuais também enfrentam estigmas

Aref Malik tem 20 anos, é bissexual e vive na periferia de Nova Delhi, capital da Índia. Vítima de abusos e bullying na escola, ele foi rejeitado desde a infância pelos pais, que tratam sua orientação sexual como uma doença.

Apurva Agnihotri é transgênero, maquiadora de celebridades na indústria de cinema de Bollywood e cada vez mais requisitada em semanas de moda na Índia. Aos 36, ela diz que nunca foi fácil fazer amigas, mas o apoio da família lhe dá confiança para seguir adiante.

As trajetórias de Aref e Apurva ilustram uma peculiaridade indiana: a sociedade costuma ser mais tolerante com transgêneros do que com gays, lésbicas e bissexuais.

A explicação para esse fenômeno está na história. Há pelo menos quatro mil anos, os livros sagrados do hinduísmo – religião predominante na Índia e no vizinho Nepal – mencionam o termo hijra. A palavra era originalmente usada para designar meninos tinham seus órgãos genitais retirados e eram cedidos pela família para viver em comunidades religiosas. Desde os anos 1990, o termo é usado para se referir aqueles que não se identificam com o gênero correspondente ao seu sexo biológico.

“Ser lésbica, gay e bissexual, ou ‘LGB’, diz respeito à sexualidade, a quem você gosta romanticamente. Aí, entram vários tabus. No caso de hijras, travestis e transgêneros, que são o ‘T’, estamos falando de identidade de gênero”, explica Anjan Joshi, diretor-executivo da ONG Sociedade para Conscientização, Cuidado e Empoderamento das Pessoas (SPACE, na sigla em inglês), que acolhe a população LGBT há 20 anos em Nova Delhi.

“A Índia um país conservador. Mas, como encontramos referências de pessoas trans nas escrituras, nos textos religiosos, foi mais fácil para a sociedade e o governo aceitarem transgêneros”, completa.

As hijras são consideradas sagradas na tradição hindu. Até hoje, elas são chamadas para abençoar casamentos na zona rural. Por outro lado, acredita-se que matar, agredir ou desagradar uma delas resultaria em uma maldição para a vida toda. Essa superstição ajuda a prevenir ataques transfóbicos nos redutos mais conservadores e no interior do país.

Segundo o governo indiano, 45 transgêneros foram assassinados no país em 2018. No Brasil, no mesmo ano, foram 168 – com uma população seis vezes menor. Não há estatísticas oficiais sobre o número de assassinatos de gays, lésbicas e bissexuais.


Hijra Madhu, de 31 anos, afirma que assumir um trabalho formal foi importante para sua auto-estima / Praveen S. / Brasil de Fato

Histórico

Os últimos 80 anos de colonização britânica na Índia – até a independência, em 1947 – foram particularmente difíceis para as hijras.

Em 1871, elas foram taxadas como “tribo criminosa” e suas comunidades passaram a ser vigiadas de perto. Nas fichas policiais, transgêneros eram frequentemente definidos como “pessoas criminosas e sexualmente desviantes”. Autoridades britânicas também fizeram campanhas para impedir a castração de meninos pelas famílias, visando à extinção gradual das comunidades hijra.

A independência do país, há 73 anos, abriu caminho para que os transgêneros conquistassem uma série de direitos. Uma das mudanças mais recentes ocorreu em 2014, quando a Suprema Corte indiana reconheceu a existência de um “terceiro gênero”, entre o masculino e o feminino. Quatro anos depois, o Parlamento confirmou essa decisão, a exemplo do Nepal.

O reconhecimento legal não significou o fim da segregação. Pelo contrário, milhares de ativistas LGBT foram às ruas para protestar contra a nova lei. Além da burocracia imposta pelo Estado para reconhecimento da identidade trans, um dos artigos mais polêmicos foi a pena estabelecida para os agressores – de seis meses a dois anos de prisão, menos que para quem comete violência contra a mulher.

Outra crítica à lei, regulamentada em 2019, foi a ausência de transgêneros no processo de elaboração do projeto. Manifestantes de todo o país se opuseram ao documento afirmando que ele reforça estereótipos, não atende às necessidades da comunidade e condiciona o reconhecimento da identidade de gênero a uma cirurgia de redesignação genital.

Mercado de trabalho

Hijras ainda vivem à margem da sociedade e desempenham um leque restrito de profissões. Cerca de 90% delas são profissionais do sexo. Dançarina e cantora de casamentos são outras ocupações comuns.

“As pessoas da nossa comunidade normalmente vivem sozinhas ou com seus gurus”, conta a hijra Madhu, de 31 anos. “Até hoje, hijras vão à casa das pessoas para abençoá-las em ocasiões como parto e casamento, em troca de dinheiro. Mas a geração mais jovem da comunidade também quer ser empregada em outros setores, quer estudar, e já começa a fazer isso”.

Madhu, que atua como conselheira na SPACE, afirma que o trabalho formal mudou a relação com sua comunidade. “Eu vivia com meu guru, ia de casa em casa abençoando as pessoas, mas havia muitas restrições. Hoje, continuo junto da comunidade, mas tenho independência financeira. Isso significa que não recebo pressão de ninguém. Não digo que sou diferente deles, mas posso dizer com orgulho que estou trabalhando e estou muito feliz”, finaliza.

A ONG aposta em cursos de maquiagem como forma de ingresso no mercado de trabalho formal. “É mais fácil a indústria da maquiagem empregar pessoas trans, e também é mais fácil para os membros da comunidade aprenderem. Mesmo que não consigam trabalho na área, esse aprendizado vai ajudá-las em seu trabalho como dançarinas ou profissionais do sexo”, explica Joshi.


Curso de maquiagem para pessoas trans no Portão da Caxemira, em Nova Delhi / Praveen S. / Brasil de Fato

Por mais de uma década, o diretor do projeto atuou em salas comerciais pequenas, alugadas em diferentes pontos de Nova Delhi. Uma das regiões mais críticas era o Portão da Caxemira, conhecida zona de prostituição e exploração sexual entre uma rodoviária e uma estação de trem ao norte da capital. Em 2012, a organização foi autorizada a ocupar um prédio público abandonado no coração daquele bairro, tornando-se o primeiro edifício do governo dedicado à defesa dos direitos LGBT em todo território indiano.

Três vezes ao ano, são abertas turmas de maquiagem. A SPACE também faz parcerias com escolas, promovendo bate-papos e combatendo estigmas. Outros serviços oferecidos são canais de escuta para prevenção ao suicídio e aconselhamento sobre doenças sexualmente transmissíveis.

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Joshi conta que a maioria das pessoas trans que procuram a ONG são oriundas de famílias de classe trabalhadora e moram em áreas de vulnerabilidade social.

Ativistas estimam que 2 milhões de transgêneros vivam na Índia, mas menos de um quarto estão registrados legalmente como “terceiro gênero”, por falta de informação ou por não concordarem com essa definição.

Diferenças

Até setembro de 2018, a homossexualidade era crime e resultava em até dez anos de prisão na Índia. Cerca de 1,5 mil pessoas eram detidas por ano por suposta violação ao artigo 377, que proibia “acesso carnal contra natura [“que se opõe às leis naturais”, em latim] contra um homem, mulher ou animal”. Essa parte do texto era usada para reprimir homossexuais desde 1861.

Mesmo após a descriminalização, os estigmas permanecem, e muitos homens gays preferem esconder da família sua orientação sexual.

É o caso de Addu, que trabalha na área de educação sexual. “Um homem contar para os pais que mantém relações com outro homem é um tabu. Por isso, muitos ocultam essa condição”, explica. “Dez anos atrás, eu nem cogitava que existissem relações homossexuais. Por isso, passei muito tempo ‘no armário’. Não fazia ideia que a relação entre dois homens poderia ser legal”.

Addu acrescenta que as dificuldades que enfrentou na vida pessoal são um combustível para ajudar outros indianos a se libertarem. “Muitos ainda pensam que, se nos expressarmos livremente, a polícia nos pegará e seremos presos. Mas isso está mudando. Desde que a homossexualidade foi legalizada, as pessoas estão mais conscientes. Elas vêm me procurar para tirar dúvidas sobre seus direitos, mas também sobre preservativos, HIV, doenças sexualmente transmissíveis”, afirma.

Para Anjan Joshi, as mudanças ocorridas nas últimas duas décadas não foram suficientes. “Assim como muitos melhoraram de vida, infelizmente vimos tantos outros morrerem nas ruas, em decorrência de HIV e tuberculose, por exemplo”, conta.

“Às vezes, a polícia nos liga, diz que encontrou uma pessoa trans na rua, quer saber se conhecemos. Em alguns casos, reconhecemos a vítima, ligamos para a família e eles se recusam a aceitar o corpo”, acrescenta o ativista. “Muitos dizem que não reconhecem aquela pessoa, já não se comovem mais. Nessas situações, nos responsabilizamos pela cremação, pelo funeral e pela despedida. Então, as leis vêm sendo alteradas, mas a mentalidade das pessoas ainda vai levar tempo para mudar”.

Hoje, uma das principais reivindicações do movimento LGBT na Índia é a legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil, o casamento gay é garantido pela Justiça desde maio de 2011.

FONTE: BRASIL DE FATO
FOTO: Money Sharma / AFP