Eleições e saúde: pandemia muda percepção sobre SUS e desafia candidatos anticiência

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Coronavírus explicitou falta de financiamento da saúde pública e colocou o tema no centro do debate eleitoral

Faltando cerca de um mês para as eleições municipais, os brasileiros se preparam para ir às urnas com um componente novo na rotina. O coronavírus não muda apenas a data, o horário e as medidas de segurança sanitária para o pleito, mas coloca o tema da saúde como pauta central do processo. Soma-se a isso o fato de que prefeitos têm como uma das funções gerenciar os recursos, equipamentos e ações da área. Portanto, deverão ser cobrados pela população na medida do que o cargo exige.

De acordo com a Constituição brasileira, a área da saúde é responsabilidade compartilhada entre o governo federal, estados e municípios. Mas as medidas que mais impactam no cotidiano da população de uma cidade são tomadas pelas prefeituras. A gestão municipal é responsável por garantir atenção básica, obrigatória a qualquer município, independentemente do tamanho. Está a cargo dos prefeitos também gerenciar os recursos para a área, que garantem equipamentos, remédios e estrutura.

Com a pandemia, temas como financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), valorização dos profissionais do setor e melhorias no atendimento se tornaram assuntos mais inseridos no dia a dia do brasileiro. As consequências da covid em outros setores também viraram pauta comum. Para o Secretário Executivo do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Jurandi Frutuoso, o assunto será inevitável e a população cobrará planejamento concreto.

“O tema impactou fortemente a vida das pessoas. Impactou na economia, impactou na sobrevivência impactou na saúde mental e na desagregação social e familiar. Não dá para um tema, com esse volume de problemas que ele trouxe, simplesmente ser esquecido ou ser omitido de debate. Os candidatos vão ter que debater, porque nós temos muitos prefeitos concorrendo à reeleição.” 

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Jurandi afirma ainda que o desafio da campanha e da gestão será diversificado, a depender do porte do município e dos problemas gerados na região pela pandemia. Na área da saúde, os casos de covid podem continuar sendo registrados, mesmo depois da vacina. Os prefeitos terão que lidar também com a demanda gerada pela paralisação e adiamento de outros atendimentos, aumento de doenças crônicas, dentre outras consequências. 

“Isso aconteceu em todas as cidades do Brasil, praticamente em 100% dos municípios. As famílias foram devastadas e o poder vai ter que responder por isso. Portanto, quem almeja esse poder vai ter que pelo menos acenar com uma possível solução ou mitigação do problema.”

Um exemplo recente: o Brasil não conseguiu alcançar a meta de vacinação para este ano. Garantir que a cidade atenda ao chamado do governo federal para ir às unidades de saúde se imunizar no próximo ano é função das prefeituras. São elas que devem oferecer postos equipados, equipes atendendo e estrutura suficiente. Também está nas mãos da gestão municipal gerencias as possíveis consequências da baixa vacinação, como novos surtos de doenças antes eliminadas do território nacional.

Investimentos e orçamento

Se a falta de investimento em saúde já era sentida pela população antes da pandemia, com o coronavírus ela ficou óbvia em todas as frentes. O desfinanciamento do SUS é um problema histórico, que foi agravado pelo “teto de gastos “do governo Temer e pelas medidas de desmonte da gestão de Bolsonaro. O médico e ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirma que o orçamento definido pelo governo atual para o próximo corta ainda mais verbas da saúde.

“Tem muita gente que no meio da pandemia bateu palma pro SUS. Tem gente que nunca defendeu o SUS e agora tá vestindo o colete do SUS. Agora é a prova dos nove. A proposta do Bolsonaro, que ele enviou para o Congresso Nacional, retira R$ 35 bilhões do orçamento do Ministério da Saúde.”

Chamam atenção também os efeitos da pandemia nas cidades com mais eleitores bolsonaristas, que podem influenciar as eleições. Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o Instituto Francês de Pesquisa e Desenvolvimento, mostra os municípios com mais eleitores alinhados a Bolsonaro sofreram mais com a covid-19. Houve 11% a mais de casos e 12% a mais de óbitos a cada dez pontos percentuais a mais de votos para o presidente nas últimas eleições.

Padilha ressalta que os candidatos que tentam colar a imagem à figura do presidente já tentam fugir do assunto. “Essa direita que é contra o SUS, contra o estado e contra as políticas sociais vai tentar esconder esse debate das eleições. Já estão tentando isso. É responsabilidade nossa, de todos aqueles que defendem a vida e defendem o SUS, colocar esse tema no centro dos nossos programas de governo, no centro dos projetos, no centro do debate. Cobrar das várias candidaturas qual é o compromisso deles de fortalecer o Sistema Único de Saúde?” 

É competência das gestões municipais aplicar os recursos que são destinados pelo governo federal e pelos estados. Também é obrigatório que a prefeitura invista um mínimo de 15% da receita para a área de saúde. Com o dinheiro, os prefeitos precisam implementar as políticas nacionais e estaduais e coordenar as ações do Sistema Único de Saúde. Aos cidadãos cabe a fiscalização e a denúncia dos problemas.

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O perigo da valorização de ocasião

Rafaela Pacheco, médica de família e comunidade e sanitarista, afirma que o discurso da valorização da saúde já ganha destaque normalmente no período eleitoral. Em uma situação de pandemia, ela vê o tema como de maior relevância nas discussões.

A médica atenta, porém, para a instrumentalização oportunista dessa defesa, com candidatos que nunca defenderam o SUS ampliando a retórica, mas não têm interesse em colocar o fortalecimento em prática.

“Vestem o colete, vestem o chapéu, a logomarca do SUS, que antigamente era usada sobretudo por nós da esquerda, pelos militantes e as militantes da reforma sanitária brasileira. Agora vem sendo tomada por uma outra semiótica e a serviço de um projeto que, bem sabemos, em nada dialoga e em nada fortalece o SUS”, relata

“Agora é o momento de gente olhar para aquelas entidades, pessoas e coletivos que, durante todo esse tempo, defendiam e defendem que a saúde não é mercadoria, ela é um direito humano”, argumenta Pacheco.

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O desafio de diferenciar candidatos que realmente pretendem melhorar a saúde da população e fortalecer o SUS fica na conta do eleitor. Um bom começo é verificar declarações, posturas e ações anteriores à pandemia. Rafaela Pacheco afirma, que com as atenções voltadas ao Sistema Único de Saúde, surgem promessas de modernizações e mudanças. A médica lembra, no entanto, que o Brasil já tem o maior sistema de atendimento público do mundo e que é necessário fortalecer e preservar essa estrutura. 

Segundo a sanitarista, o marco legal do SUS é suficiente e não demanda atualizações. É preciso cumprir a lei que já existe, assim como as instâncias deliberativas do sistema. Na lista de garantias essenciais está também providenciar os meios para reforçar a participação popular nas decisões de forma organizada e o fortalecimento das instâncias de transparência.

“Quer defender o SUS? Vai precisar fazê-lo em atitudes. A primeira atitude é a defesa intransigente da luta pelo aumento do financiamento do SUS. Para além das palmas, que a gente aceita de coração e agradece, a gente precisa de atitude. Para que esse SUS, essa proposta maravilhosa, não rua exatamente por conta desses tais defensores oportunistas, que se colocam como defensores, mas às sombras seguem sabotando como sempre fizeram”, ressalta a médica. 

FONTE: BRASIL DE FATO
FOTO: Marcelo Camargo/Agência Brasil