Economista e ex-ministra, que participou da criação do programa Bolsa Família, fala às jornalistas sobre o impacto dos desastres em torno das políticas públicas brasileiras nos últimos anos
A economista e ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante o governo da presidente Dilma Rousseff, Tereza Campello, foi entrevistada pelas jornalistas do GGN no Cai na Roda do sábado, 13 de fevereiro, programa exibido na TV GGN. A especialista, que participou da criação do programa Bolsa Família, contou sobre o planejamento estratégico e social do “primeiro grande embrião de políticas públicas” e denunciou o desmonte do assistencialismo social iniciado em 2018, agravado pela administração de Jair Bolsonaro (sem partido) e que ganhou ares – ainda mais – desastrados em meio a crise sanitária ocasionada pela pandemia do coronavírus.
O Bolsa Família, criado em 2003 pelo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi um dos grandes atores no combate à miséria nas duas últimas décadas. Mais que um programa de distribuição de capital para complementar a renda de famílias que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza, ele também presta o acompanhamento assistencial dos beneficiários, por meio do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
“O Bolsa Família completou 17 anos e como programa ele veio se transformando. O Bolsa Família de hoje não é mais aquele programa de 2003. Mas, a sua essência estrutural e fundamental se mantêm, mostrando que o diagnóstico [feito à época] era correto, que as avaliações e a construção original teve uma base sólida”, explicou Campello. “O Bolsa Família foi o primeiro grande embrião de políticas públicas porque a avaliação era que nós precisávamos de um programa que, no mínimo, atingisse três grandes objetivos: aliviar a pobreza, tivesse integração com a educação e garantisse o acompanhamento em saúde [das pessoas atendidas]”, pontuou.
Segundo a ex-ministra, o êxito do programa é consequência do pacto federativo elaborado e executado com excelência até 2014. “Os fundamentos que levou ao processo de construção e pactuação foi feito [a partir] de um conjunto de atores, não foi uma construção de ‘quanto vai custar?’, que é o que vem sendo debatido hoje, mas do quanto era importante e estratégico (…) Nós pactuamos com as prefeituras, passo a passo, e a cada alteração, melhoria, cada mudança era tudo pactuado. O êxito dessa experiência tem muito a ver com isso e com a construção de uma rede de políticas políticas: a assistência social casada com a distribuição de renda”, ponderou.
Ela também esclarece a função de cidadania que envolve o programa. “O Bolsa Família não é um cartão bancário que passa dinheiro para as pessoas e é por isso que esse programa é tão diferente dos outros, a transferência de renda é apenas um pedaço dele. O Bolsa Família é um programa de inclusão das famílias (…) Esse processo de inclusão exige conhecimento”, apontou. “Então, o Bolsa Família junto com a rede de assistência social se tornaram a porta de entrada do Estado. Os saltos que passamos a dar tinham a ver com esta desconstrução do estado excludente e a organização do estado para chegar na população pobre (…) O grande desafio que o Bolsa Família e a rede de assistência social conseguiram cumprir foi de ter ter um programa nacional que funciona bem em 1570 municípios, que é articulado, olha e respeita as diferenças, e como se consegue isso? exatamente pela estruturação [que presa] o pacto federativo”, disse.
“Graças ao Bolsa Família a redução da mortalidade infantil causada por desnutrição chega a 60%, a redução da mortalidade infantil causada por diarreia chega a 46%. Tem uma pergunta que eu gosto de fazer aos fiscalistas do austericídio que é: Quanto custa não salvar essa criança? Quanto custará ao país perder mais um geração com crianças desnutridas? Nós vamos perder uma geração”, disparou.
O desmonte do Bolsa Família
Os avanços significativos e que fizeram da política pública brasileira referência mundial, no entanto, foram colocados em xeque em 2015. Após o impeachment da presidente Dilma, a gestão de Michel Temer (MDB) e depois de Jair Bolsonaro miraram no funcionamento do Bolsa Família e na cadeia de ações sociais que o programa englobava até então.
Na contramão do que foi a marca do programa, o governo de Jair Bolsonaro decidiu substituir as entrevistas presenciais de possíveis beneficiários do programa com profissionais assistenciais, por um cadastro feito por meio de um aplicativo virtual. Campello explicou que quando uma família “conversa com a assistência social e não com um aplicativo, ela não só vai responder quanto é a renda dela, porque tem um psicólogo, ou advogado, olhando para o conjunto de desproteções e ele identifica vulnerabilidades, como violências e isolamentos “.
“A perda do ponto de vista de conhecer essa família e atuar para superar essas dificuldades é gigantesca e é impossível fazer isso por um aplicativo, não só pelo acesso a internet, mas porque isso nunca irá substituir a relação com um profissional da área de assistência social”, disse.
Campello também denunciou o corte de 67% no financiamento do SUAS e a que a utilização do aplicativo ainda desbanca o trabalho de centenas de assistentes sociais. “Com o corte de 67% do financiamento estratégico, que inclusive pagava o pessoal [da assistência social, ou os CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] estão fechados, ou funcionando só com metade das equipes. Isso é gravíssimo e é um desperdício, porque a rede existe, foi treinada e qualificada”.
“O SUAS organizou uma rede de profissionais, o pobre não precisa de ajuda de um não profissional bondoso, o pobre como alguém de classe média tem direito a um atendimento profissional, essa rede de proteção tem que ser profissionalizada, tem que ter protocolo, você trata como política política, como direito, não como ajuda. No caso do conceito de assistência social estamos votando para a década de 40, é um atraso vergonhoso”, desabafou.
Para Campello a administração do programa também faz toda diferença, uma vez que “o mesmo instrumento que serve para incluir, serve para excluir. Então o cadastro único, que tem mais de 200 informações [sobre determinada família], pode ser usado como uma ferramenta de planejamento público e inclusão, mas também como uma ferramenta de exclusão”, apontou.
A dimensão da pobreza
Em setembro passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou as condições sociais do país em 2019: na época, quase 52 milhões de brasileiros viviam na pobreza. Hoje, no entanto, esse número deve ser muito maior, uma vez que especialistas estimam que a taxa de desemprego, exacerbada pela pandemia da Covid-19, está entre 20% e 30%, ao contrário dos 14% que vêm sendo divulgados. Além disso, no ano passado, o Brasil voltou ao mapa da fome.
“O Bolsa Família já estava defasado, ele era um programa muito maior do que só passar esse dinheiro, era um complemento de renda de famílias vulneráveis. Hoje, isso desapareceu, as famílias não têm trabalho, o nível de desemprego é altíssimo e é maior do que esses 14 milhões [de desempregados], a gente estima que [a taxa de desocupação] está entre 20% e 30%”, explicou.
Ainda, ao falar sobre a importância da ajuda do governo federal as famílias de baixa renda em meio a pandemia, Campello destacou que “O ideal seria ter o auxílio emergencial e discutir uma transição que não pode ser voltada ao Bolsa Família, porque a pandemia vai demorar a passar, o Brasil não vai voltar ao normal em três quatro meses, mesmo vacinando todo mundo. Então nós temos que estar preparados para dar sustentação para essa transição que é longa e esperamos que para um país melhor, apesar de tudo indicar que não’, disse.
A austeridade fiscal
A economista ainda comentou as políticas econômicas do governo Bolsonaro, que presa pela austeridade fiscal.
“Não é hora de corte, é hora de gasto. Se o Estado não puxar o gasto, o investimento público não será retomado, o mundo todo diz que hoje temos que gastar, mas o Brasil continua investindo numa política, retrógrada, atrasada e prejudicial (…) Essa política de cortes de gastos e austericídio será extremamente prejudicial a economia brasileira, porque gastar com o auxílio emergencial ou com o bolsa família não é só bom para o pobre, mas para o comerciante, setor industrial, para os prestadores de serviço, para economia, dinamiza e gera empregos que neste momento nós precisamos tanto”, completou.
Participaram desta edição do Cai na Roda as jornalistas Lourdes Nassif, Cintia Alves, Patricia Faermann, Ana Gabriela Sales e Tatiane Côrrea. Assista o programa na íntegra:
Sobre o Cai Na Roda
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FONTE:GGN
FOTO:REPRODUÇÃO