Medida está na contramão de uma educação inclusiva e é entendida como um retrocesso do ponto de vista legal
Desde que o presidente Jair Bolsonaro criou a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), parlamentares, especialistas e membros da sociedade se articulam para invalidar seu decreto de origem. A reação contrária se dá principalmente pelo fato de a política assinalar a possibilidade de escolas especializadas conduzirem a aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades ou superdotação. A medida está na contramão de uma educação inclusiva e é entendida como um retrocesso do ponto de vista legal.
No Congresso, as reações se acumulam. O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentou um projeto de decreto legislativo (PDL 437/2020) para sustar os efeitos do Decreto 10.502, de 2020, por entendê-lo “excludente e ilegal”. A iniciativa conta com a adesão da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP).
Para os parlamentares, a PNEE fere a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (que tem força de lei no Brasil pelo Decreto Legislativo 186, de 2018, e pelo Decreto 6.949, de 2009) e contraria o Estatuto da Pessoa com Deficiência, conhecido também como Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146, de 2018). A lei discorre sobre o direito à educação das pessoas com deficiência via sistema educacional inclusivo e atendimento educacional especializado, mas não cita as escolas especiais.
“Uma das minhas principais críticas a essa política é sobre a sua incapacidade de compreender e implementar o modelo de direitos humanos da deficiência. As barreiras das comunidades, das escolas é que são as responsáveis pela exclusão, e não os impedimentos das pessoas com deficiência“, critica a Gabrilli.
“A política diz claramente que o aluno será avaliado e então será buscado um modelo alternativo à escola comum quando ele não se adequar ou não tiver condições. Isso fere totalmente o compromisso que o Brasil assume em sua farta legislação vigente”, complementa a parlamentar, tetraplégica desde 1994 após sofrer um acidente de carro.
Ela reconhece que a política abre brechas para a exclusão de estudantes com deficiência das escolas regulares. “Infelizmente, essa política abre a possibilidade dos gestores das escolas regulares, especialmente das particulares, de continuarem a negar o acesso à inclusão escolar de pessoas com deficiência, sob a alegação de que o melhor para elas é a escola especial”.
Gabrilli também condena o fato do texto do decreto não ter sido debatido previamente com organizações e ativistas que atuam pelo direitos das pessoas com deficiência.
Outras reações no Congresso
Na Câmara, foram apresentadas pelo menos seis propostas contrárias aos efeitos do decreto por parlamentares da oposição.
Uma das propostas é de autoria de seis integrantes da Comissão Externa de Acompanhamento do MEC, que tem como relatora a deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP). Ela também criticou a falta de debate acerca da construção da política.
“Ainda é clara a falta de debate público na construção da política, que não reflete a opinião da sociedade, já que pesquisas demonstraram que nove em cada 10 brasileiros acreditam que as escolas se tornam melhores ao incluir crianças com deficiência”, declarou.
Para especialista, texto induz famílias a optarem pelas escolas especiais
Para Rodrigo Mendes, superintendente do instituto que leva o seu nome e atua para garantir o direito à educação das pessoas com deficiência, e qualificar essa experiência na escola, também é preocupante a destinação de recursos públicos que a nova política prevê às unidades especializadas.
“Com isso, você enfraquece todo o processo de aprimoramento de infraestrutura, formação de educadores, tudo que é necessário, para as escolas comuns avançarem na temática”, sentencia.
PARA RODRIGO MENDES, TEXTO DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL INDUZ AS FAMÍLIAS A OPTAREM PELAS ESCOLAS ESPECIALIZADAS. CRÉDITOS: REPRODUÇÃO INSTITUTO RODRIGO MENDES
O especialista também vê com preocupação a maneira como a política coloca a família frente à decisão de optar por uma escola regular, um direito assegurado pela Constituição, ou uma escola especial. O decreto destaca que uma das diretrizes para a implementação da PNEE é “priorizar a participação do educando e de sua família no processo de decisão sobre os serviços e os recursos do atendimento educacional especializado, considerados o impedimento de longo prazo e as barreiras a serem eliminadas ou minimizadas para que ele tenha as melhores condições de participação na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas”.
“Pra mim, esse texto induz as famílias a consideraram as escolas especializadas como uma boa alternativa. É um discurso sedutor que aumenta a insegurança dessa famílias a partir da ideia que as escolas especiais é que são ambientes protegidos, seguros e qualificados para lidar com esse público”, avalia.
Mendes reconhece que a experiência da educação inclusiva no Brasil acumula conquistas, mas também erros e desafios. Isso, contudo, diz ele, não pode servir de justificativa para se voltar a investir em um modelo que, durante décadas, se mostrou fracassado e incapaz de formar pessoas autônomas.
‘Precisamos prepará-los para a vida’
A professora universitária Maria Carolina Ferreira Reis, mãe uma criança de 9 anos com Síndrome de Down, guarda uma memória negativa sobre as salas especiais.
“Quando era criança, eu estudei em uma escola pública que tinha as salas especiais para alunos com deficiência ou que não se encaixassem no padrão escolar. Lembro que nós éramos ameaçados com a possibilidade de ir para aqueles locais em caso de desobediência. Era comum a gente ouvir: ‘se você não se comportar, vai para a sala especial’. Era uma visão ainda muito atrasada de que a deficiência era algo contagioso. Estamos em outro momento, mas temo pela segregação e pelo retrocesso que podemos criar na visão da sociedade sobre as pessoas com deficiência”, observa.
O meu medo é que essas escolas especializadas acabam focando mais na deficiência do que nas habilidades e potencialidades dos estudantes, em uma abordagem muito mais médica, do que pedagógica
Maria Carolina conta que a filha sempre estudou em escolares regulares da rede privada e vê ganhos em seu desenvolvimento. “Os problemas existem, mas como com qualquer outro aluno”, conta, ao defender a inclusão da criança em um ambiente diverso.
“O meu medo é que essas escolas especializadas acabem focando mais na deficiência do que nas habilidades e potencialidades dos estudantes, em uma abordagem muito mais médica do que pedagógica. A educação tem muitos aspectos envolvidos, não estamos falando apenas do cognitivo, mas do social, do comportamental. É preciso prepará-los para a vida”, reforça a mãe.
Maria Carolina ainda teme que os recursos da educação pública sejam afetados em prol do aparelhamento das escolas especiais. “É uma falácia dar a ideia de que essas escolas serão para todos. Quem vai conseguir pagá-las”, questiona. “Precisamos entender que a inclusão não é benéfica só para o grupo das pessoas com deficiência, mas para toda a sociedade, que passa a vivenciar um mundo mais diverso”.
Escolas regulares x escolas especiais
Um estudo feito pelo Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação do Instituto Jô Clemente (CEPI) – antiga Apae de São Paulo – revela que crianças e adolescentes que frequentam as salas de aula comuns apresentam ganhos consideráveis em aspectos como identidade, autonomia, comunicação, linguagem, expressão, relacionamento interpessoal e aprendizagem, quando comparados a estudantes que frequentam as escolas especiais.
Estudantes com e sem deficiência têm ritmos diferentes, como qualquer pessoa em processo de ensino, de aprendizagem e de desenvolvimento humano
“Esses alunos demonstram e expressam seus desejos e maior interesse pelas atividades propostas, mostrando-se questionadores em alguns momentos das aulas. Em relação à independência, eles são capazes de se locomover pelas dependências das escolas, dirigindo-se ao banheiro, bebedouro, refeitório, servindo-se e alimentando-se adequadamente nos horários de recreio. No que diz respeito à comunicação e expressão, a maioria consegue transmitir suas ideias e se fazer entender por meio de gestos ou imagens, mesmo quando ainda não há comunicação oral”, conta a autora do estudo e supervisora do Atendimento Educacional Especializado (AEE) do Instituto Jô Clemente, Roseli Olher.
ESTUDO REALIZADO PELO CEPI EVIDENCIOU GANHOS CONSIDERÁVEIS EM CRIANÇAS QUE FREQUENTAM SALAS DE AULAS REGULARES. CRÉDITOS: SOLSTOCK
A pesquisa contemplou ainda a análise do desenvolvimento de crianças e adolescentes matriculados em escolas especiais. “Nesses casos, o desenvolvimento não é o mesmo, infelizmente. Foram identificados poucos avanços quanto à autonomia, aprendizagem e comportamento social. Os alunos permaneceram com atitudes infantilizadas, comportamentos inadequados, dificuldades para enfrentar e resolver conflitos, vocabulário restrito e fora de contexto quando solicitados para expor suas ideias e se fazer entender perante os colegas e adultos, demonstrando pouco interesse e iniciativa frente às propostas apresentadas. Em relação à autonomia e independência, ainda necessitavam de um profissional para acompanhá-los pelas dependências da escola”, comenta Roseli.
O CEPI também se posicionou contra a Política Nacional de Educação Especial do governo Jair Bolsonaro e defendeu, em nota, a convivência em coletividade.
“Estudantes com e sem deficiência têm ritmos diferentes, como qualquer pessoa em processo de ensino, de aprendizagem e de desenvolvimento humano. A convivência em coletividade e as vivências que a todos são desafiadoras no dia a dia possibilitam escolhas distintas e significativas e permite que todos sejam atores deste processo. Não é pertinente que os alunos público-alvo da Educação Especial sejam separados nem privados de convívio com outros alunos, já que é confirmado que se aprende em coletividade.
FONTE: CARTA CAPITAL
FOTO: DIVULGAÇÃO