Tese do ‘marco temporal’ entra em julgamento no Supremo nesta sexta (11)

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“Nossas vidas serão julgadas”, afirma Ana Patté, do povo Xokleng, território-alvo da ação judicial que será avaliada

O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia nesta sexta-feira (11) o julgamento do chamado “marco temporal”, que poderá ajudar a definir os rumos de diferentes conflitos envolvendo terras indígenas no país. A tese, defendida por ruralistas e atores interessados em áreas de comunidades tradicionais, ficará sob o crivo dos ministros até o dia 18 de junho, com julgamento no plenário virtual da Corte.

A tese do marco temporal se baseia na ideia de que populações indígenas só teriam direito à terra se estivessem de posse da área ou em disputa judicial por conta dela em 5 de outubro de 1988. A data em questão marca a promulgação da atual Constituição Federal.

Dia 18 de junho será a data-limite para os magistrados postarem seus votos no sistema, cuja dinâmica não inclui debates entre eles. O objeto da ação que será avaliada é especificamente um pedido de reintegração de posse apresentado pelo governo estadual de Santa Catarina contra o povo Xokleng, que vive na Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, onde também se concentram indígenas Guarani e Kaingang.

O caso tem repercussão geral, o que significa que a decisão a ser tomada pelo STF servirá de norte para que a Justiça balize o entendimento sobre outros conflitos envolvendo territórios tradicionais no país. É também por isso que o julgamento tem provocado, ao longo dos últimos anos, grande mobilização de comunidades indígenas, ambientalistas e outros defensores dos direitos dos povos tradicionais.

“(A tese do marco temporal) é totalmente o contrário de toda a constituição da nossa luta, de toda a nossa história de sobrevivência, de 521 anos. Pra nós, é um marco da morte, o marco do genocídio dos povos indígenas”, rechaça Ana Patté, integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e do povo Xokleng, para quem a interpretação desconsidera o histórico de violências e remoções forçadas às quais estiveram expostas as comunidades ao longo do tempo.

Na visão dos Xokleng, o que está em jogo envolve mais que a área em questão. Com intensa ligação com a natureza, o povo indígena confere à terra um valor subjetivo, imaterial e ancestral vinculado a questões espirituais, culturais e ambientais.

O nosso objetivo é sempre preservar o meio ambiente. Nós somos o meio ambiente e precisamos dele, não só a comunidade indígena, mas sim o povo brasileiro. A sociedade mundial precisa de um bom ar, uma boa água, um bom ambiente, então, esse é o nosso trabalho”, diz Brasílio Priprá, um dos interlocutores na defesa da terra.

“O que nós esperamos é que se faça justiça, não só para o povo Xokleng, mas para os povos indígenas do Brasil. Esperamos que o STF reconheça os direitos originários”, acrescenta Brasílio, que se prepara para ir a Brasília junto com outras lideranças para acompanhar mais de perto as articulações em torno do julgamento.

Continuidade

No crivo dos ministros, estará em disputa com a tese do marco temporal a ideia de “direito originário”, relacionada à “teoria do indigenato”, segundo a qual as garantias desses povos remontam a tempos anteriores ao surgimento do Estado brasileiro.

Para os Xokleng, a interpretação do marco temporal ofende os direitos constitucionais das comunidades tradicionais porque os limita, negando a compreensão da teoria mencionada.  Assim como outros povos, os moradores da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ vivem sob fogo cruzado, em meio a uma forte disputa pelo território.  De acordo com estudo do Instituto Socioambiental (ISA), os Xokleng de Santa Catarina são sobreviventes do processo de colonização do Sul do Brasil e quase perderam a totalidade da sua população por conta do extermínio que acompanhou o avanço de invasores na região.


Bugreiros no território Laklãnõ/Xokleng; homens atuaram em conflito com indígenas locais – Documentário “Laklãnõ/Xokleng: os órfãos do Vale ” / Andressa Santa Cruz e Clara Comandolli

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, por exemplo, a comunidade teve seus recursos naturais intensamente explorados, entre eles o palmito e a madeira. A construção de uma barragem no local também afetou o território indígena, provocando inundações e prejudicando a agricultura da comunidade.

Para Ana Patté, a linha do tempo ajuda a demonstrar o histórico de luta e sobrevivência dos moradores da terra, que, após diferentes invasões e dizimações, hoje conta com cerca de 2.300 indígenas locais. São 494 famílias distribuídas em nove aldeias.  

“Eu fico bastante emocionada de pensar que as nossas vidas serão julgadas esta semana pelo STF, porque o meu avô morreu e não pôde ver a terra demarcada. Meu bisavô também morreu e não pôde ver a terra demarcada. E a gente segue toda essa trajetória de luta por todos aqueles que morreram e por todos que virão, que serão os nossos descendentes. Espero que se faça justiça agora”.

Fonte: Brasil de Fato