Em conversa com BdF, professora de economia da UFRJ destrincha problemas do ajuste fiscal e reforça coro pela sua queda
A previsão do orçamento público de 2021 precisa ser fechada até dezembro e, em meio a debates sobre o tema, um dos pontos mais inflamados é o que questiona o Teto de Gastos e luta por sua revogação.
Aprovada em 2016, ainda durante o governo de Michel Temer (2016-2018), a política vem sendo aprofundada na gestão Bolsonaro e ganha cada dia mais adversários. O motivo é a redução gradual de verbas destinadas a diferentes áreas da administração pública, com destaque para saúde, educação e assistência social.
Em uma entrevista cirúrgica, a professora Esther Dweck, do Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica a razão prática da crescente impopularidade da medida: “[Ela] é uma redução dos gastos por habitante. Se você corrige os gastos apenas pela inflação, sem levar em consideração o crescimento populacional, por exemplo, significa que o que o Estado está gastando por habitante tende a cair. Temos demonstrado que isso, de fato, vem acontecendo”.
Uma das maiores especialistas que são críticas ao Teto, a economista conversou com o Brasil de Fato sobre esse e outros pontos e, a todo momento, frisou que é preciso “conscientizar as pessoas demonstrando os efeitos” da política porque “o investimento está sumindo do âmbito federal”. De forma taxativa, a professora reforçou o coro em defesa da derrubada do Teto, uma demanda que coleciona apoiadores. Confira, a seguir, a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato – Como teto de gastos afeta a população em geral?
Esther Dweck – Desde o início da discussão, em 2016, vários economistas, nos quais eu me incluo, tentaram demonstrar os problemas que o Teto de Gastos traria, principalmente porque ele impõe o que as pessoas chamavam de congelamento, mas isso não é verdadeiro. O Teto de Gastos, na verdade, é uma redução dos gastos por habitante. Se você corrige os gastos apenas pela inflação, sem levar em consideração o crescimento populacional, por exemplo, significa que o Estado está gastando por habitante tende a cair. Temos demonstrado que isso, de fato, vem acontecendo.
Como no orçamento você tem despesas que crescem, por uma questão demográfica, como é o caso da Previdência, como o crescimento da população idosa é maior do que o crescimento da população em geral, só esse fato vai fazer com que o crescimento do gasto seja superior ao crescimento da inflação. Com uma compressão gigantesca de gastos, o Estado vai gastar cada vez menos com a população. O que [isso] gera é um corte generalizado das despesas que são discricionárias, [aquelas] que o governo pode decidir se faz ou não.
O investimento está sumindo do âmbito federal, mesmo aqueles de manutenção dos ativos que a gente tem, quanto mais em novas estradas, novas escolas, novos hospitais, uma série de coisas que não estão sendo feitas. O nível de investimento no âmbito federal é inferior ao “pré-PAC” [Programa de Aceleração do Crescimento], está no nível do início dos anos 2000, que é um nível superbaixo, que não nos permite nem manter o que temos.
Além disso, outras despesas básicas de manutenção dos espaços públicos não estão sendo feitas – falta, por exemplo, combustível para o pessoal do Ibama e do ICMBio fazer o básico na questão ambiental; falta dinheiro para luz, para atendimento às escolas, universidades, hospitais.
E, além das despesas discricionárias, temos despesas da saúde e educação, que foram diretamente afetadas pela pandemia. Nesse caso, só está sendo uma emenda constitucional, porque você precisa mexer nos mínimos constitucionais de saúde e educação. Então, o Teto de Gastos reduziu os pisos mínimos de saúde e educação, que antes estavam vinculados à arrecadação federal e passaram a ser corrigidos apenas pela inflação.
Em 2020, pré-pandemia, temos dados que mostram que a saúde perdeu mais de R$ 22 bilhões de seu orçamento, se comparado ao que seria o mínimo anterior, e a educação, que estava acima do mínimo, vem sendo reduzida – a educação sai de um patamar de 26% das receitas líquidas de impostos e chega a um patamar de 19%.
Uma outra área muito afetada foi a área de ciência e tecnologia. De 2016 até 2019, a parte discricionária teve uma perda de 38% do orçamento. Para o ano que vem, o orçamento do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), por exemplo, está super minguado. É um dos principais órgãos, fontes da área.
Outras áreas praticamente desapareceram do orçamento: de habitação, cultura, Direitos Humanos, combate ao racismo, defesa das mulheres. Isso tudo está sumindo do orçamento.
Então, temos um orçamento que foi super minguado, que nos deixou super fragilizados para o início da pandemia. Durante a pandemia, se utilizou de umas principais cláusulas de escape que tinha na Emenda Constitucional 95.
É uma cláusula de escape tão ruim, que ela só serve para uma situação completamente absurda como estamos vivendo agora. Ela não serviria se a economia simplesmente estivesse na situação em que estava antes da pandemia, de um baixo crescimento, com desemprego muito alto. A Emenda Constitucional 95 mandava o governo continuar cortando gastos sem nenhum tipo de incentivo. Este ano, como é uma situação extrema, de calamidade pública, você tem a opção de executar parte do orçamento por meio de créditos extraordinários que estão fora do Teto.
Conseguimos ter auxílio emergencial, o benefício para os trabalhadores informais, conseguiu-se pagar os estados e municípios com repasse extra, mas porque todas essas despesas estão sendo executadas extrateto. Se tivesse o Teto valendo, nada disso poderia ter sido feito. Essa possibilidade de executar parte do orçamento fora do Teto só foi possível este ano porque tinha calamidade. Ano que vem, não, volta tudo ao normal, como se em 31 de dezembro de 2020 falássemos: “Acabou pandemia, o Brasil está ótimo”, e o governo volta a fazer todas as barbaridades que estava fazendo antes.
Como a pandemia pode potencializar as consequências do Teto, considerando que as restrições serão mantidas após um eventual controle da covid?
A gente vê todo um debate em torno do orçamento da saúde para o ano que vem, da continuação do auxílio emergencial, da ideia que o próprio governo tinha de fazer algumas obras e investimentos públicos para retomar a economia. Tudo isso é impossível dentro do Teto. Em relação ao auxílio emergencial, o governo viu que isso deu certo, tanto economicamente quanto politicamente, do ponto de vista de apoio da população, e prorrogou para dois meses, o que foi essencial para evitar que a economia voltasse a cair de novo.
Como isso mostrou que o governo tinha dinheiro, que não estava quebrado, que tinha capacidade total de fazer frente a uma situação como essa, eles voltaram a dizer que não tinham dinheiro e tentaram diminuir o auxílio para R$ 300. Tem uma pressão enorme para que isso não seja feito, para que volte aos R$ 600. Mas a gente não tem noção de quando a pandemia vai acabar. Ainda temos muitas pessoas que estão sem emprego e não estão procurando porque têm o auxílio, o que é bom, porque elas têm que ficar mais em casa, estão evitando se expor. Mais do que isso, é algo que tem feito o desemprego não aumentar tanto.
Temos muita gente que saiu do mercado de trabalho, conseguiu o auxílio e, portanto, está com renda, está conseguindo manter o mínimo de alimentação para sua família, e está aguardando que a economia volte para poder, de fato, procurar emprego e voltar a ter uma vida mais normal. Mas o governo está trabalhando como se isso fosse acontecer no dia 31 de dezembro, como se isso tudo fosse se resolver. Então, com relação ao auxílio, começou essa briga, e aí o Ministério da Economia falou “não, pra fazer o auxílio, eu preciso cortar o abono salarial”, que é um beneficio de dois salários mínimos pra pessoas que ganham até dois salários mínimos, ou seja, são trabalhadores pobres no Brasil, pessoas que ganham até R$ 2 mil. Aí [falaram] “não pode cortar isso”.
Aí eles falaram “não, se não vai cortar isso, então, vamos cortar o BPC”, que é o Benefício de Prestação Continuada pago a idosos e deficientes com renda inferior a um quarto do salário mínimo. De novo, era tirar de um pobre pra tentar manter a situação. Aí depois falaram “não, então, vamos corrigir nem o salário mínimo nem a aposentadoria”, aí de novo tiram das pessoas pobres, porque esse é o Teto de Gastos. O Teto impõe que você vá reduzindo os gastos per capita e, se você quiser aumentar uma coisa, necessariamente tem que cortar outra. Então, na área do auxílio, é isso.
Na área de saúde, vai ser um tombo de mais de R$ 35 bilhões do orçamento deste ano, como se todos os leitos que foram abertos este ano não fossem funcionar ano que vem, né. A saúde teve um incremento de orçamento que era pra ter novos leitos, poder manter isso, fazer as pesquisas necessárias, uma série de coisas. Ano que vem, volta o orçamento inicial mais baixo que o deste ano. É uma lástima.
Sem falar nas outras áreas – educação, etc. Na área de investimentos, em que o governo tentou fazer aquele plano de investimentos pra recuperar a economia, não tem nenhum espaço pra isso. Na verdade, o investimento inicial de 2021 é menor que o de 2020, e essa é a lógica. Quando a gente pensa no médio prazo, pensa como estava antes da pandemia: a gente teve uma crise em 2016, e aí durante a crise se faz essa emenda, que impede que o governo atue pra tirar a economia da crise, contrariando tudo que está sendo discutido fora do Brasil de que você precisava de mais política fiscal, de o governo entrar mais, atuar mais pra tirar a economia do buraco. E aí a gente vinha crescendo naquele 1% ao ano em 2017, 2018 e 2019 e não é permitido nem retomar ao nível de produção de 2014.
Aí a gente entra num ano como este já fragilizado, a economia já vinha desacelerando antes da pandemia, os dados mostram isso. O último trimestre de 2019 e os três primeiros meses de 2020 já eram meses de desaceleração, então, possivelmente, seria um ano pior que o ano passado, independentemente da pandemia. E tudo indica que, com a pandemia, a gente vai ter aí uma queda de 5% a 6% este ano. E o que o governo fala? “Não vou fazer nada, vou deixar a economia”. Qual é o cenário, com base nisso? É um cenário de altíssimo desemprego. Todas as pessoas que não estão hoje sendo consideradas desempregadas porque não estão procurando emprego, ao terminar o auxílio, vão ter que terminar emprego porque elas não vão ter como sobreviver.
Então, [haverá] altíssimo desemprego, uma economia estagnada, possivelmente até revertendo a queda, tendo uma nova queda por conta de corte de estímulos que estão sendo dados agora. Então, o que nos aponta – e um pouco a combinação de políticas que vem nesse pacote – é: o governo deixa de fazer o seu papel do ponto de vista de estimular a economia e, ao mesmo tempo, faz um monte de medidas que são super destruidoras de um projeto de desenvolvimento.
Então, quais são as propostas que estão [aí]? Você não aumenta os gastos, por conta do Teto, e, ao mesmo tempo, faz privatização de empresas. A proposta deles é fazer uma reforma administrativa que, no fundo, quer precarizar mais o serviço público. Então, é “vamos cortar as jornadas do serviço público e cortar salários”. No nível federal, 54% dos servidores são da área de educação. E, quando eles tentam impor isso nos estados e municípios, saúde e educação são 60%, 70% dos servidores. Então, imagina o que significa isso em termos de prestação de serviço público pra população.
A gente está assim… a população já sentia isso. Você já não tinha mais médico de família em vários municípios, sem falar no Mais Médicos, que acabou, então, municípios ficaram completamente sem médico. E uma série de outras áreas da saúde, a de vacinas – não é nem vacina pra coronavírus, é a de vacinas tradicionais – estava com problema. Toda a área de atenção básica estava com problema, então, a gente estava assim já caminhando pra indicadores muito ruins – volta da fome, volta de mortalidade infantil, da mortalidade materna. Uma série de indicadores sociais que sinalizam pra todas essas políticas que estão sendo feitas.
A quem interessa esse tipo de modelo?
Acho que, pra pensar a quem interessa, a gente poderia pensar no que seria a alternativa a isso do ponto de vista de como a gente deveria estar agindo e quem se beneficiaria e quem perderia com essa alternativa. Acho que fica mais claro pra entender quem está se beneficiando. Tem um economista de quem gosto muito que fala do seguinte, “as práticas políticas do pleno emprego”.
Então, os empresários ganham quando os governos estimulam a economia, quando isso estimula a geração de emprego, porque vai estimular também a demanda pelos produtos deles e vai gerar toda uma economia positiva, supostamente pra todo mundo. Mas isso muda a correlação de forças numa economia, isso muda quem tem poder quando você está numa economia em que os trabalhadores estão empregados.
É um pouco o que tivemos em 2013, que as pessoas podiam sair de um trabalho pro outro com uma certa facilidade, a gente começou a discutir que faltava engenheiro no Brasil, a gente estava com um nível muito alto de demanda por engenheiros. Foi o ano em que mais engenheiros, mais pessoas procuram por [cursos de] engenharia do que por direito. Foi uma coisa inédita no Brasil, justamente pelo próprio processo de desenvolvimento econômico puxado muito pelos investimentos públicos e pelo próprio processo de redistribuição de renda, que estimulava o consumo e estava gerando um padrão de crescimento muito puxado pela própria economia interna brasileira.
Isso gera uma mudança de correlação de forças que a gente via, e aí, pra mim, é muito nítido que, a partir de 2013, 2014, você tem um rompimento de um pacto social, que era um pacto que estava presente na Constituição de 1988, um pacto [no sentido] de você montar no Brasil um Estado de bem-estar social que fosse financiado por impostos e que tivesse esses impostos cobrados dos mais ricos. Não foi isso que aconteceu, na verdade. A gente tem uma [situação] em que a Constituição foi parcialmente implementada. Pelo lado das despesas públicas, ela estava sendo implementada aos poucos, e isso a gente chama [de] todo um processo de criação de uma série de benefícios sociais. Com a valorização do salário mínimo, isso gerou um potencial enorme de redistribuição de renda no Brasil e de estímulo à economia, com estímulo às economias locais.
Vários municípios brasileiros foram estimulados nesse período de crescimento das transferências junto com o crescimento do salário mínimo e, ao mesmo tempo, com esse baixo desemprego. Isso vai gerando um aumento do poder de barganha dos trabalhadores, e ali em 2013 começa essa tensão. Qual seria, então, a alternativa ali?
Seria a gente complementar o Estado de bem-estar social, seria mudar nossa estrutura tributária, cobrar impostos dos mais ricos, fazer com que eles paguem efetivamente impostos porque, na verdade, desde 1995 houve uma mudança na estrutura tributária que desonerou muito os mais ricos. Então, quem ganha renda por meio de lucros de empresas ou dividendos pagos por empresas não paga nenhum imposto de renda [IR], enquanto os assalariados brasileiros que estão acima de determinado nível todos pagam IR descontado na fonte, na maior parte das vezes.
Então, a gente tem esse desnível, fora outros impostos que nunca forma implementados. O próprio imposto sobre herança no Brasil é muito baixo, o imposto sobre propriedade, principalmente sobre propriedade rural, é superbaixo. Então, o que a gente precisava fazer naquele momento – e isso estava muito nítido – era um caminho de consolidação de um Estado de bem-estar social, que o Estado passasse a atuar em prol da maior parte da população. Era fazer uma reforma tributária pesada, que mudasse um pouco essa estrutura tributária e que ajudasse a consolidar esse sistema de bem-estar social.
E, obviamente, isso vai desafiar alguns, porque você está dando liberdade aos trabalhadores, mudando a estrutura tributária em direção à taxação dos mais ricos. Isso rompe, obviamente, ali o pacto social, e desde então as medidas têm sido feitas [no sentido da] destruição da Constituição. Então, é uma medida que a gente chama de “cavalo de Troia” porque, na época em que foi aprovada, pra quem quiser procurar lá os discursos, os relatores falavam que eles estavam só melhorando a Constituição, que iam botar uma coisa ali pra garantir que o governo elegesse prioridades, que não estava cortando nenhum gasto.
Era tudo mentira. A gente dizia “está cortando gastos, está cortando inclusive na área de saúde e educação”, e eles falaram que não. E, aos poucos, eles foram fazendo isso de [dizer] “ah, eu prefiro fazer tal reforma”, “tenho que fazer tal reforma”, e aí eu acho que foi muito nítido. Depois da reforma da Previdência, da reforma trabalhista, e aí agora eles querem reforma administrativa, e as reformas são todas no sentido de reduzir os bancos públicos, reduzir a Petrobras, reduzir todos os instrumentos do Estado.
E aí [querem] construir um Estado que, na verdade, não beneficia ninguém ou não beneficia quase ninguém, só uma parcela muito pequena da população, que não é nem 1%. Talvez sejam os 0,3% ou 0,1% porque, no Brasil, a renda é tão concentrada, que os mais ricos aqui são os ‘zero, vírgula alguma coisa’, não são nem 1%. Obviamente, é um projeto que só beneficia eles, que são pessoas que nem têm empresas, que não precisam de mercado consumidor e de [políticas] que gerem renda.
O que é pior é que todas as políticas mantêm a economia em recessão e eles usam um discurso que é o seguinte: “A próxima reforma vai fazer a economia crescer”. Então, primeiro, era “tira a Dilma, e a economia cresce”. Depois, “aprova a Emenda Constitucional 95, e a economia cresce”. Depois, “aprova a reforma da Previdência que a economia cresce”, “faz a reforma trabalhista, que vai gerar 6 milhões de emprego”, aí agora é a reforma administrativa. Aquelas PECs [Propostas de Emenda Constitucional] de novembro de 2019 que o Guedes mandou foram muito nítidas. https://www.brasildefato.com.br/2020/02/12/relator-da-pec-dos-fundos-livra-fat-de-extincao-e-mantem-retirada-de-saude-e-ciencia
Nesse caso, ele não escondeu o objetivo. Ele estava mexendo, entre outras coisas, no Artigo 6º da Constituição Federal, [que trata] sobre direitos sociais, que são subordinados a uma sustentabilidade fiscal intertemporal, que ninguém nunca soube o que significa e que, na prática, é subordinado ao que o ministro da Economia quer. Ele fala “eu vou cortar isso, vou cortar aquilo”, e pronto. Quando ele fala de furar, quebrar o piso, é isso. É tirar o mínimo de garantias de transferência de renda, de políticas sociais e de serviços públicos pra população. É o objetivo dessas mudanças.
Faz sentido discutir reformas, como a tributária, mantendo o Teto de Gastos?
Boa pergunta, porque, na verdade, hoje é assim “eu quero fazer a CPMF”, né. O Guedes quer a CPMF e quer uma reforma tributária que é muito mais marginal, que não tem nenhum tipo de mudança na estrutura tributária. É ainda mais marginal do que a que estava proposta no Congresso, que pelo menos organizava todos os impostos indiretos, que são os impostos cobrados sobre bens e serviços, que os mais pobres pagam proporcionalmente mais.
O que o governo propôs é um negócio mais marginal, só ligado aos impostos federais, muito pouco. Não muda em nada e onera os setores que são importantes, como é o caso dos livros. Foi muito discutido isso porque oneraria a produção de livros no Brasil, e aí, na verdade, entre outros setores prejudicados. Na verdade, eles não estão fazendo nenhum tipo de mudança relevante, e aí eles [dizem] “façamos agora a CPMF”. Pra quê ele quer a CPMF? Não é pra gastar mais porque, com o Teto de Gastos, na verdade, você não pode gastar mais. Tem que cortar gastos, e ele quer simplesmente, pra aumentar, mudar o resultado fiscal, ele quer ter mais déficit primário pra gastar com a dívida [pública]. O objetivo dele não é recurso pra gastar com saúde, educação, Renda Brasil ou qualquer coisa desse gênero, porque eles não vão poder gastar nenhum centavo a mais, com base no Teto.
Então, você tem toda razão porque a ideia da reforma tributaria que tem sido proposta pela oposição – tem um projeto de reforma tributaria solidária e tem um mais recente, que é pra taxar os mais ricos para o Brasil sair da crise, algo assim – são todos projetos que pressupõe que você retire o Teto de Gastos, que faça [isso de forma] combinada. Você faz a reforma tributária, taxa os mais ricos e, ao mesmo tempo, tira da dívida, pra que o governo pegue esse recurso e gaste pra 99% da população. Não são só os mais pobres, e sim 99% da população. Então, essa mudança precisava ser feita em conjunto, você tem toda razão.
Já [com] a reforma administrativa, o objetivo deles é tentar diminuir o Estado, aí tem tudo a ver com o Teto. Eles querer ir diminuindo o Estado, porque a reforma é, no fundo, [para] precarizar mais os serviços públicos, gerar menos [despesas]. “Ah, eu quero cumprir o Teto, aí eu demito um monte de servidor e cumpro o Teto de Gastos”, independentemente de qual área é o servidor, de qual impacto isso vai ter pra população.
O servidor público não é um cara que está atrás de um balcão fazendo nada. Ele é um professor que está numa universidade ou numa escola, é um técnico, um enfermeiro, um administrativo, é o cara que está ali numa agência do INSS pra permitir que o cara tenha [acesso à] Previdência, é o cara que está assim ou mesmo as pessoas que ficam em Brasília, que estão executando as políticas. Então, sem essas pessoas, a política não anda, ela não vai sair andando se não tiver gente pra tocar. Acho que tem um pouco a ilusão de que isso vai melhorar, quando, na verdade, vai piorar a prestação de serviço público pra metade da população.
Quais os caminhos e as chances para a derrubada do Teto, hoje?
Primeiro, precisa de apoio popular pra derrubada do Teto, muita pressão e precisa criar uma maioria aí. Na época da aprovação [dele, em 2016], no fundo, quando ficou mais claro pras pessoas o que estava sendo feito, saiu uma pesquisa mostrando que as pessoas eram contra esse tipo de política que corte [orçamento] das áreas sociais. Mas, como as pessoas não entenderam que isso era o que estava sendo feito, a reação não foi tão grande. Foi naquele ano super conturbado, o ano do impeachment. Foi fácil eles passarem essa proposta, mas a gente precisa reverter e precisa de maioria.
A primeira coisa é que a gente precisa convencer as pessoas de que isso é um problema grave, que elas estão sendo diretamente afetadas no seu dia a dia, desde quando ela não consegue uma agência do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], não consegue um posto de saúde. Isso tudo tem a ver com o Teto de Gastos. Aí quais são os caminhos hoje postos? Tem um caminho que é pelo Supremo, porque há vários juristas que mostram que a EC 95 é inconstitucional, que, apesar de ser uma mudança constitucional, ela fere as garantias fundamentais da Constituição.
Tem vários juristas que fazem isso e tem várias ações de inconstitucionalidade no Supremo mostrando que a emenda é inconstitucional. Então, caberia um julgamento do Supremo, e seria o caminho mais fácil. Esse é o caminho em que a gente nunca acreditou tanto, dado a composição do Supremo. Mas, com a pandemia, [isso] minimamente se abalou, embora isso não seja uma pauta prioritária do Supremo. É dado que o governo conseguiu contornar, conseguiu gastar mais, mas, talvez, ano que vem, quando voltar tudo a valer, talvez fiquem mais nítidos os problemas. Teremos que aguardar essa linha aí.
A outra linha seria pela mudança constitucional, que é ideal também. Seria uma linha de “vamos fazer a mudança que for pra sempre”, mas infelizmente tudo caminha pra uma terceira linha que é a pior de todas: é a de flexibilização parcial. É criar uma gambiarra, aí o governo vai e cria um negócio e diz “eu vou criar isso daqui e fica fora do Teto”. O governo ganha um poder de dizer o que ele quer e não quer fazer. Este ano saiu uma reportagem mostrando que as áreas que têm muito poder, como Judiciário, Ministério Público, conseguiram este ano ter um aumento do seu teto por um entendimento do próprio Tribunal de Contas da União (TCU). As áreas que têm poder conseguem essa gambiarra e outras não, e o governo vai elegendo mudança.
Aí, no próximo governo, se ele não tiver condições de mexer no Congresso, o Teto se mantém, é obrigado a cumprir, e cada ano que passa isso tende a ficar mais impossível e gerando mais cortes. Eu fiz uma estimativa de que, em 2022, o espaço pra despesa discricionária é zero, zero, zero. E discricionária é água, luz, combustível, são coisas básicas para o funcionamento do governo.
Então, realmente, é uma situação gravíssima, e o ideal é que a gente fizesse por meio do Supremo declarando inconstitucionalidade ou por uma mudança constitucional, que exige maioria do Congresso, três quintos, o que é muito difícil, mas que também seria um caminho, caso tenha uma pressão popular muito forte. A terceira, que eu acho que é a mais provável que o governo vai fazer, é um puxadinho aqui, um puxadinho ali, que atende aos interesses particulares e não resolve o problema central.
O que oposição e movimentos sociais podem fazer para pressionar contra a emenda?
Acho que tem um grupo muito importante ligado à plataforma Dhesca, que é uma coalizão, e tem a campanha do “não aos cortes sociais”. Tem um grupo muito grande de entidades da sociedade civil que têm feito um trabalho muito bacana de pressão. Vai ter uma campanha no dia 5 de outubro muito importante pra mostrar problemas em diversas áreas, então, a gente tem feito um trabalho muito forte. Acho que esse é o caminho, o de tentar conscientizar as pessoas demonstrando os efeitos que [o Teto] vai ter.
A gente também está organizando mais um livro sobre isso, o Pedro Rossi e a Ana Luiza Matos Oliveira [economistas]. A gente já fez um livro em 2018. Na verdade, a gente fez um documento em 2016, com um grupo de economistas. Em 2018, [fizemos um] com muitos [nomes] de varias áreas mostrando os efeitos. E, agora, [vem] o novo livro mostrando, de novo, os efeitos em varias áreas e também os efeitos econômicos. É [pra] contrapor os vários argumentos econômicos que são utilizados pra defender o Teto de Gastos.
Então, tem um trabalho forte na sociedade civil, e inclusive, nesse grupo da Coalizão de Direitos a gente fez um documento pro Supremo mostrando todos os problemas do Teto de Gastos. Acho que o documento ficou bem interessante. Eu acho que tem um monte de material e a gente precisa que eles sejam mais divulgados e que a gente consiga fazer maior pressão. Acho que [isso] é central.
Os partidos de oposição conhecem essa discussão, alguns deles têm priorizado essa luta. Acho que agora tem a proposta de fazer uma PEC de revogação da Emenda Constitucional 95, o que é muito importante. A gente tem também um trabalho bem interessante da sociedade civil e de vários movimentos sociais que estão nesse grupo, e eu acho que houve outros que estão fora. Então, acho que é o caminho mesmo, pressionando. Mesmo nos partidos de oposição, a gente sabe que não tem conseguido chegar à maioria da população. A gente ainda precisa de um trabalho maior de comunicação, de formiguinha, de tentar conscientizar as pessoas e tentar de novo uma maioria em defesa dos direitos sociais.
*Colaboração: Cristiane Sampaio
FONTE: BRASIL DE FATO
FOTO: Marcelo Camargo/Agência Brasil