Motivos das negativas envolvem desde dificuldades com o aplicativo a erros nos bancos de dados do governo
O auxílio emergencial, medida aprovada pelo governo federal em abril, chegou como um alívio para muitas famílias que tiveram sua renda afetada com a pandemia. Segundo dados da Caixa Econômica Federal, divulgados na quinta (2) – fim do prazo para cadastramento –, são 64,9 milhões de beneficiários ao todo.
Outros 1,2 milhão de cadastros ainda não foram processados; 42,5 milhões foram considerados inelegíveis; 1,9 milhão estão em análise ou em reanálise.
Ou seja, o benefício de R$ 600 foi negado a milhões de brasileiros, apesar de muitos deles cumprirem com os requisitos exigidos. Segundo a advogada Fernanda Lage, integrante da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e da Associação de Juristas pela Democracia (ABJD), são diversas questões enfrentadas pelas pessoas que tiveram o auxílio negado.
“O principal problema que a gente percebe é o acesso à plataforma digital por um público que é vulnerável socialmente. A gente sabe que o acesso à internet não é universal. Às vezes a pessoa até usa o WhatsApp, mas tem dificuldade com a plataforma em si. Sem contar que as pessoas não tiveram nenhuma orientação para o preenchimento do cadastro”, aponta.
O governo não tem o olhar para povo da classe baixa e isso é muito complicado.
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Dados desatualizados
Muitos casos de negativa, segundo a advogada, estão relacionados com a desatualização no Cadastro Único (CadÚnico), sendo que revisão cadastral e alteração de dados foram dificultadas, e algumas vezes impossibilitadas, pelas Portarias 335 e 387, ambas do Ministério da Cidadania.
Foi por conta do CadÚnico desatualizado que a moradora de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG), Claudia Maria de Oliveira teve o auxílio negado.
Eles negaram, alegando que eu tenho renda de três salários mínimos. Eu não tenho essa renda.
Há mais ou menos quatro anos, ela deixou de ser beneficiária do Bolsa Família quando conseguiu um trabalho de garçonete com carteira assinada. Nas horas vagas, para complementar a renda, Claudia trabalhava em festas e eventos. Entre 15 e 20 dias antes da pandemia, Claudia ficou desempregada. Ainda em abril, ela se inscreveu para receber o benefício emergencial.
“Com a pandemia, veio essa bomba para mim. Fecharam as portas dos eventos e eu fiquei sem renda nenhuma. Entrei com o pedido do auxílio assim que começou. Eles negaram, alegando que eu tenho renda de três salários mínimos. Eu não tenho essa renda. Minha carteira está branca, sem registro nenhum e não tenho renda fixa. Eu contestei, mas está em análise há quase dois meses”, relata.
Mãe sozinha, Claudia mora com o filho de 17 anos. Para sobreviver nesses quase quatro meses sem renda, ela recebe cesta básica das campanhas de solidariedade e seu irmão ajuda financeiramente “como pode”.
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“Não tenho pagamento”
O caso da professora de educação infantil Paloma Toche Pena é semelhante ao de Claudia. Paloma, que é moradora da Lapinha da Serra, no município de Santana do Riacho (MG), teve o auxílio emergencial negado, mesmo se enquadrando nos requisitos, e também está sem renda desde o início da pandemia.
Moro numa comunidade em que as pessoas vivem do turismo, mas está tudo fechado
O motivo alegado é que ela ainda seria servidora pública, por ter trabalhado na prefeitura do município até janeiro de 2019. Desde essa época, Paloma é autônoma e trabalha em uma associação não governamental, que suspendeu os pagamentos de seus prestadores de serviço.
“Está sendo muito complicado, como eu não tenho vínculo, não tenho pagamento. Além disso, moro numa comunidade em que as pessoas vivem do turismo, mas está tudo fechado. Todas as famílias que sustentam a associação e acreditam no projeto, também estão sem como se sustentar. A associação está passando por uma dificuldade grande e junto com ela os professores que atendem lá”, relata.
A falta de organização do governo está causando muito transtorno.
Segundo Paloma, o governo não rodou a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), o que gerou uma desatualização da sua situação trabalhista perante o Estado. Ela entrou com um processo junto a Defensoria Pública da União (DPU), que está atendendo os casos de negativa do auxilio, mas até hoje não conseguiu contestar a decisão.
Mãe de família, Paloma vive de aluguel e está recebendo ajuda da comunidade e de familiares. “Essa falta de organização do governo está causando muito transtorno. Inclusive na comunidade existem muitas pessoas que não conseguiram receber o auxílio por esse e outros motivos. O governo não tem o olhar para povo da classe baixa e isso é muito complicado”, desabafa.
“Parou geral”
A negativa ao auxílio emergencial também aconteceu para Maxwel Gonçalves Gomes. Ele mora em Betim (MG) junto com a filha, de 7 anos, e o enteado que acabou de completar 18 anos e já trabalha sem carteira assinada em uma mercearia. No início da pandemia, Maxwell ficou 22 dias sem trabalhar, porque, desde que ficou desempregado, faz um bico em uma cooperativa na área de carga e descarga.
Nesse trabalho, Maxwell não tem carteira assinada e nem dia certo para trabalhar. A cada semana, a cooperativa divulga a escala e no final do mês paga os trabalhadores por dia trabalhado. Ele conta que na semana retrasada conseguiu trabalhar dois dias, na passada seis e, nesta semana, ele ainda não sabe.
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“No início da pandemia a cooperativa parou geral. Aí desandou pra mim, porque tenho uma conta no cartão de crédito num valor altíssimo, porque eu desempreguei e não consegui pagar. Já tinha até negociado essa conta e eu tava pagando os boletos direitinho. Aí veio a pandemia e me atrasou mais. Agora o meu nome provavelmente está com restrição no Serasa”, conta.
Eu nem to contando com esse dinheiro, porque tem muito tempo.
Maxwell fez o cadastro pelo aplicativo em abril, refez mais duas vezes e por fim, teve o auxílio negado com a alegação que outra pessoa de sua família já havia recebido. Realmente, sua mãe que possui o CadÚnico recebeu o benefício, e sua irmã, que fez a inscrição pelo aplicativo, também foi beneficiária. No entanto, ele explica que eles moram separados, cada um em sua casa.
“Para ser sincero, eu nem to contando com esse dinheiro, porque tem muito tempo. Desde o início o meu cadastro está em análise. E nada. Se a gente faz planos e o dinheiro não vem, é pior”, desabafa. A negativa de Maxwell não tem possibilidade de contestação, mas foi aberto um processo na DPU que ainda não tem resposta.
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Solidariedade
A Campanha Solidariedade em Rede, promovida pela Arquidiocese de Belo Horizonte, disponibiliza, entre outras ações, orientação jurídica em 15 cidades de Minas Gerais. São 89 locais de atendimento à população.
De acordo com o balanço divulgado pelo Vicariato Episcopal para Ação Social, Política e Ambiental, 397 famílias já receberam orientação jurídica. Fernanda Lage, que é uma das advogadas voluntárias no atendimento às famílias, conta que cerca de 80% dos atendimentos solicitados são em razão da dificuldade de acesso ao auxilio emergencial.
FONTE: BRASIL DE FATO
FOTO: Marcelo Pinto/APlateia