por Alexandre Teixeira, Celso José Ferreira de Oliveira, Charles Alcântara, Dão Real Pereira dos Santos e Wilson Luiz Müller
Por que tantos articulistas da mídia corporativa têm se dedicado a atacar os servidores públicos? Desinformação, cortina de fumaça? Ou será um mal disfarçado interesse em agradar os ricos neoliberais que querem desmontar o Estado do bem-estar social?
Em 24 de agosto, foi publicada na Folha de São Paulo-FSP uma matéria assinada por
Fernando Canzian, sob o título “Servidores no Brasil concentram 6 das 10 ocupações mais bem pagas”.
O articulista faz várias comparações entre servidores públicos e a iniciativa privada. Entre outras coisas, conclui que “a renda média de servidores praticamente empata com a de investidores e rentistas – e ganha dos empresários.”
Ele compara os ganhos médios dos servidores públicos com os ganhos dos empresários. O texto leva o leitor à conclusão de que os servidores públicos são privilegiados em comparação com outros segmentos. Isso justificaria a proposta de reforma administrativa do governo, que pretende cortar em até 25% o salário dos servidores.
Se a ideia é debater a necessidade de eliminar eventuais privilégios, a metodologia de comparar médias induz a falsas conclusões. Além disso, o texto não avança para apontar concretamente os privilégios que deveriam ser corrigidos. Ao não fazer esse esforço – e ficar somente em generalidades -, o texto tem o efeito de apenas contribuir para a demonização gratuita do serviço público, o que, aliás, tem sido o esporte favorito de grande parte dos articulistas defensores do Estado mínimo.
Antes de prosseguir na análise técnica dos dados, convém discutir o conceito de privilégio. Diz-se que alguém é privilegiado quando obtém benefício em detrimento de outro que, estando em condição similar, não obteve a mesma vantagem. Diz-se também de alguém que não precisa respeitar norma a que estão submetidos os demais, ou que tem o poder de mandar fazer para si norma mais benéfica que a válida para os demais.
Se um trabalhador assalariado presta relevantes serviços para o bom desempenho de uma empresa, ninguém o acusará de ser um privilegiado por receber um salário mensal de R$ 30 mil reais. Ao receber esse salário, ele deverá pagar R$ 6 mil de imposto de renda.
Se o sócio da empresa, patrão desse trabalhador, recebe R$ 1 milhão a título de distribuição de lucros, isento de imposto de renda, pode-se dizer que o patrão teve um tratamento tributário privilegiado em relação ao trabalhador, porque esse foi obrigado a pagar imposto de renda sobre seus rendimentos, enquanto que o patrão foi dispensado.
A maior parte dos dados utilizados pelo articulista tem como fonte a publicação feita pela Receita Federal denominada “Grandes Números IRPF”, acessível para consulta na internet. Citaremos abaixo as tabelas-base utilizadas para nossa análise, para que os interessados possam conferir as informações que serão aqui citadas.
As comparações feitas pelo articulista pecam, metodologicamente, por desprezar os seguintes aspectos:
– a tabela 13 foi por ele utilizada para concluir que os servidores públicos ganham mais que os empresários. Nessa tabela constam 4,3 milhões de “Proprietários de empresa ou firma individual ou empregador-titular”. O rendimento médio desses 4,3 milhões de empresários é de R$ 12,7 mil/mês;
– a tabela 10 traz as “Declarações dos Recebedores de lucros e dividendos + Rendimento do sócio e titular de microempresa”. Na tabela são 3,2 milhões de empresários. Aqui o rendimento médio é de R$ 23,6 mil/mês;Leia também: A anemia do espírito, por Leonardo Boff
– a diferença de 1,1 milhão de “empresários” entre as tabelas 10 e 13 corresponde aos empregadores-titulares. Esses representam, em sua absoluta maioria, trabalhadores precarizados, que foram obrigados a celebrar contrato como pessoa jurídica (pejotização), perdendo seus direitos trabalhistas. Pela sua condição, e por receberem rendimentos baixíssimos, não podem ser considerados empresários. Por isso, a tabela 13 não pode ser usada para medir a média de rendimentos dos empresários;
– essa mesma situação de baixa remuneração ocorre com 598.000 empresários da tabela 10, que ganham menos de 3 salários mínimos. Mesmo mantendo-se essas faixas para compor a média, chega-se a R$ 23,6 mil/mês;
– o salário médio dos servidores da tabela 13 foi composto usando o mesmo critério adotado em relação aos empresários, somando-se rendimentos tributáveis + tributados exclusivamente na fonte + rendimentos isentos. Porém, os rendimentos isentos são indenizações, ajudas de custo, diárias, que se presumem gastas em decorrência da atividade profissional. É fato que, no judiciário e no Ministério Público, esses penduricalhos acabam sendo um incremento dos vencimentos de juízes e procuradores, estourando o teto constitucional e elevando seu rendimento para além de R$ 50 mil mensais. Porém, tal situação não ocorre com os rendimentos dos servidores do Executivo, que não possuem penduricalhos que elevem de forma indireta seus vencimentos. Como a reforma administrativa do governo só atinge os servidores do Executivo, é preciso utilizar outras bases de dados. O articulista, ao usar bases comparativas inadequadas, obteve como resultado conclusões falsas;
– as comparações feitas pelo articulista tinham o propósito de justificar a redução dos salários do Executivo, que são o objeto da discussão da reforma administrativa. A base mais completa sobre remunerações de servidores públicos pode ser encontrada no estudo do IPEA, no endereço https://www.gazetadopovo.com.br/republica/salario-servidor-publico-trabalhador-privado-ipea-1986-2017/.
Para os servidores do Executivo, diz o estudo: “No nível federal, a remuneração média passou de R$ 4,8 mil em 1986 para R$ 8,5 mil em 2017…”. Em 2018 houve um reajuste médio de 5% sobre os vencimentos dos servidores do Executivo. Tem-se então que o salário médio do servidor federal do Executivo em 2018 (mesmo ano dos dados das tabelas do IRPF) foi de R$ 8,9 mil/mês.
Conclui-se, portanto, que a média de ganho dos servidores federais do Executivo, ao contrário da afirmação do articulista, não é maior que a média dos 2,3 milhões de empresários, mas corresponde apenas a 37,7% do ganho médio dos empresários. A tabela 10 mostra ainda que 1.390.000 empresários no país ganham mais do que essa média dos servidores federais do Executivo.
É preciso considerar ainda que a base de dados dos servidores públicos, que resulta neste salário médio de R$ 8,9 mil/mês, contempla todos os cargos que exercem atividades privativas, essenciais ou típicas de Estado como: delegados, auditores fiscais, advogados públicos, analistas, peritos, etc, servidores bem remunerados em qualquer país do mundo.Leia também: Polícia do Mato Grosso investiga ataque a tiros no território do cacique Raoni
Antes de prosseguir, cabe aqui uma pergunta: qual a razão de fundo para os defensores do neoliberalismo se indignarem com o fato dos servidores públicos serem dignamente remunerados? Eles prestam serviços relevantes ao Estado, tem excelente formação acadêmica, são treinados e qualificados para as funções que exercem, dedicam-se exclusivamente ao serviço público e não tem nenhuma chance de ficarem ricos algum dia. Por que, em média, eles não podem receber o equivalente a 37% do que ganham, em média, os empresários?
A população que paga a maior parte dos impostos (pois que cobrados sobre o consumo) tem direito a serviços públicos de qualidade. Para manter o Estado funcionando adequadamente, é preciso contar com servidores qualificados e bem remunerados.
Demonizar o conjunto do funcionalismo público com o único intuito de promover um corte linear nos salários não é uma solução inteligente. A questão central é localizar os setores privilegiados, para cobrar deles uma quota de contribuição para ajudar a enfrentar a grave crise que afeta dezenas de milhões de brasileiros. Essa discussão nos remete a olhar para o topo – não para a planície – tanto no serviço público quanto no mundo empresarial. A esse propósito, o articulista perdeu uma boa oportunidade de falar do teto constitucional no serviço público (só falou do teto de gastos que afeta os mais pobres), do tratamento desigual que o governo vem dando a militares e servidores civis, e da necessária tributação progressiva dos super-ricos. Superar esses privilégios, facilmente identificáveis em nossa sociedade de crescentes desigualdades, contribuirá de forma bem mais efetiva para equacionar os desequilíbrios fiscais do que ficar espalhando dados falsos sobre os servidores públicos.
A subtributação dos super-ricos salta aos olhos a partir da análise da Tabela 10 dos “Grandes Números IRPF”. Os empresários que recebem mais de R$ 320 salários mínimos/mês pagam uma alíquota média efetiva de 1,8% de imposto de renda, enquanto que os servidores públicos (tabela 13) pagam, em média, 16%. Os super-ricos, que ganham R$ 320.000,00 por mês, pagam somente R$ 5.760,00 imposto de renda. Se fossem tributados como os servidores públicos, teriam que pagar R$ 83.000,00 por mês, R$ 77.240,00 a mais do que pagam hoje.
É preciso pôr fim a esse BAITA privilégio dos super-ricos. Seus rendimentos devem ser tributados de forma progressiva como eatabelece a Constituição Federal.
Em relação aos cargos melhor remunerados no serviço público, os dados são os seguintes:
– Procurador e promotor do Ministério Público: são 14.365 declarantes, com rendimento médio mensal de R$ 53.486,00.
– Juiz, ministro e desembargador: são 21.185 declarantes, com rendimento médio mensal de R$ 51.766,00.
A lei estabelece um teto constitucional como limite para os vencimentos a serem recebidos por servidores públicos. Esse teto é de R$ 39.293,00.Leia também: Caixa tem lucro de R$ 5,6 bilhões mas insiste em retirar direitos de bancários
As únicas duas ocupações que extrapolam o valor do teto são a dos procuradores e juízes. O montante que excede o teto é de R$ 4,7 bilhões por ano.
No Executivo Federal não existe nenhuma categoria (está em curso a autorização para incluir os militares entre os quebra-teto) que possa ser definida como privilegiada. Os rendimentos mais elevados são inferiores a 80% do teto constitucional.
Outros fatos que o articulista não mencionou:
– os servidores públicos civis já tiveram redução efetiva de rendimentos por conta do aumento das alíquotas da contribuição na recente reforma da previdência social. Essa redução chega a 5% para rendimentos líquidos em torno de R$ 20 mil, o que dá uma redução salarial de R$ 1 mil para essa faixa;
– o governo deu dois aumentos salariais para os militares em curto espaço de tempo. O primeiro aumento foi para “compensar” o aumento das alíquotas previdenciárias. Mais recentemente deu reajustes de até 73%, na forma de penduricalhos, que vão custar R$ 26,5 bilhões aos cofres públicos em cinco anos;
Não é correto, do ponto de vista de um debate intelectual honesto, que certos privilegiados sejam endeusados e considerados intocáveis.
Se queremos mesmo que todos os privilégios sejam combatidos para ajudar o país a superar esse momento difícil, podemos nos unir em torno das seguintes pautas:
– que o Estado preste bons serviços à sociedade, pois a imensa maioria dos brasileiros não tem recursos para pagar educação, saúde, previdência e segurança privadas;
– que os servidores que prestam esses serviços à coletividade sejam justa e corretamente remunerados;
– que a super-exploração a que foi submetida uma imensa parcela de trabalhadores brasileiros não sirva como justificativa para massacrar de igual forma os servidores públicos;
– que sejam taxados e/ou majoradas as alíquotas do imposto: sobre as grandes fortunas e heranças; sobre os lucros e dividendos distribuídos aos sócios, que hoje são isentos; das instituições financeiras e mineradoras com lucros extraordinários em plena pandemia (estimativa de arrecadação anual de R$ 292 bilhões – vide campanha “Taxar os super-ricos para reconstruir o país”);
– que seja dado o mesmo tratamento a militares e servidores civis;
– que a lei do teto constitucional seja aplicada a todos os servidores públicos.
O servidor público não merece nem mais nem menos que qualquer outro cidadão brasileiro. Ele tem deveres e direitos. Entre os seus direitos está o de não ser tratado como uma “Geni” pelos articulistas da mídia corporativa.
Alexandre Teixeira e Celso José Ferreira de Oliveira – Presidentes das Delegacias Sindicais Rio de Janeiro e Curitiba do Sindifisco Nacional
Charles Alcântara – Fenafisco
Dão Real Pereira dos Santos – Instituto Justiça Fiscal – IJF
Wilson Luiz Müller – Auditores Fiscais pela Democracia- AFD
FONTE: GGN
FOTO: REPRODUÇÃO