Novo modelo de financiamento da Atenção Primária ataca princípios básicos do SUS, como a universalidade e a equidade
Quem financia, determina. O Ministério da Saúde (MS) publicou uma portaria com o novo modelo de financiamento da Atenção Primária em Saúde para todo o Brasil. Somado às propostas da Carteira de Serviços, Médicos pelo Brasil e Saúde na Hora, já está claro que não estamos diante de uma mudança pontual em cálculos e fórmulas de repasse de recursos do governo federal para os municípios: estamos diante de um novo modelo de Atenção Primária em Saúde (APS).
É fundamental, para nossas estratégias de resistência, compreender quais são os aspectos centrais dessa nova APS do Governo Bolsonaro:
1) Fim da Estratégia de Saúde da Família como o modelo prioritário para a Atenção Primária no Brasil:
Nos discursos, a Equipe de Saúde da Família (ESF) continuaria como prioridade. Mas, uma análise cuidadosa revela o contrário. No componente de capitação ponderada, que corresponderá por cerca de 46% de todo o recurso repassado aos municípios, o MS vai pagar o mesmo valor por cadastro na ESF e em um novo modelo de equipes, chamado Equipe de Atenção Primária (EAP). As EAPs serão compostas somente por médico e enfermeiro, recebendo exatos 50% (por jornada de 20h de cada profissional) ou 75% (por jornada de 30h de cada profissional) dos recursos de uma ESF completa, com 40h de médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACSs). Portanto, o MS vai financiar de forma vantajosa EAPs em detrimento das ESFs.
Segundo o próprio Erno Harzheim, Secretário de Atenção Primária à Saúde, em evento do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS) de Minas Gerais, cerca de 10 mil pedidos de credenciamento devem chegar ao MS. E, em poucos meses, junto com 43 mil ESF teremos milhares de EAPs sem técnicos de enfermagem e sem ACS. É mais um grave ataque à Saúde da Família no Brasil.
2) Cadastro como principal critério de financiamento e avanço da precariedade do trabalho em saúde:
O Banco Mundial recomenda ao Brasil adotar a cobertura universal, em detrimento do Sistema Universal de Saúde. Na cobertura, o importante é a pessoa estar coberta: seja pelo sistema público (cesta básica de serviços), seja pelo plano ou seguro de saúde (com segmentações e diferenças de qualidade conforme sua capacidade contributiva).
Não há qualquer justificativa assistencial ou administrativa para acabar com o repasse financeiro populacional universal (conhecido como PAB Fixo) e implantar o sistema de capitação com ponderação, a não ser atender ao Banco Mundial e atacar a universalidade do SUS (inclusive quem faz falas de defesa da política do Ministério da Saúde em eventos oficiais são economistas do Banco Mundial).
Utilizando ou não um serviço de saúde, é fundamental que o Sistema Único de Saúde esteja apto para proporcionar cuidados às pessoas, que extrapolam inclusive a dimensão meramente curativa ou assistencial, tendo elementos da vigilância e promoção da saúde associados, por exemplo. O PAB Fixo é uma das poucas modalidades de repasse sistemático e contínuo na saúde do Governo Federal aos municípios brasileiros, dentro de um contexto onde a União concentra recursos e há um profundo desequilíbrio federativo em relação ao financiamento das políticas sociais envolvendo os entes governamentais do país (União, estados e municípios).
Assim, em um momento de arrocho fiscal e gastos crescentes dos municípios em relação ao custeio e investimento em saúde, poderá ser desastrosa esta nova modalidade de repasses, onde todos os componentes se tornaram variáveis. A União tem responsabilidade junto aos estados e municípios em também garantir universalidade no acesso ao sistema de saúde. E isso implica em garantir recursos de forma constante regularmente. O PAB Fixo já correspondia no modelo anterior ao menor percentual dos recursos ofertados na Atenção Primária, em relação às modalidades de repasses mais flexíveis que já existiam, que compunham o chamado PAB Variável.
Se não fazemos melhor, é porque nos faltam condições de trabalho e somos responsáveis por mais pessoas do que o ideal
Há bases de dados que seguem metodologias estáveis, sistemáticas e contínuas de levantamento populacional já realizados periodicamente por órgãos governamentais como o IBGE e órgãos estaduais. Ignorar bases demográficas, que ofertam dados secundários já constituídos para justificar “ausência de informações seguras para transferência de recursos” soa como verdadeira hipocrisia. Há uma confusão clara entre cobertura e acesso, para exatamente manipular a distribuição de recursos financeiros, com um “verniz técnico” e assim disfarçar a possibilidades de manipulação política e fragilização dos municípios na negociação com a União.
Sabemos que mesmo no interior das equipes da Estratégia Saúde da Família as ferramentas de acréscimo de clientela como cadastramento individual ou domiciliar são algumas das possibilidades de levantamento de dados, que podem ser associados com outras formas de levantamento, como a Estimativa Rápida Participativa e o Diagnóstico de Demanda, que triangulados podem produzir informações mais consistentes numa lógica de planejamento local em saúde para definição de base populacional territorial, identificação de necessidades e diagnóstico de saúde.
Reorientar uma lógica de PAB Variável buscando maior eficiência do sistema é aceitável, mas suprimir o PAB Fixo totalmente soa inclusive como irresponsável diante de municípios que terão dificuldade de apresentar soluções de curto e médio prazo para problemas associados à adscrição de clientela (grande pressão assistencial aos serviços de saúde e dificuldade de liberação de equipes para abordagem de território full time, fragilização de estratégias de contratação de ACS, dificuldades de manejo e circulação em áreas de abrangência de algumas comunidadese dificuldades de visitação domiciliar e identificação das pessoas em territorialidades-dormitório em periferias urbanas, dentre outros problemas).
É desonesto e injusto dizer que as atuais 43 mil ESF deveriam atender 140 milhões de brasileiros, mas não atendem 50 milhões e atendem mal os outros 90 milhões, conforme propagandas do Ministério da Saúde. Primeiro, porque a fonte de dados de cadastro não traduz a realidade: o eSUS não está implantado em todos os municípios e funciona mal em muitas localidades inclusive devido à qualidade da internet e dos computadores de diversas unidades de saúde pelo país. Segundo, porque as ESF precisam ser qualificadas, mas mesmo assim em muitos lugares garantem melhores resultados de Saúde que os planos privados, em especial nos cuidados de pessoas com doenças crônicas.
Quem conhece e vive a realidade de uma Equipe de Saúde da Família sabe que o castrado não é o principal problema, apesar de considerarmos que é um elemento que deve ser enfrentado. Mas não com “afogadilho ou faca no pescoço”, como o Governo Federal deseja impor aos municípios, suas equipes de saúde e população. E sabemos que na prática ser cadastrado não significa ser cuidado, como ser cuidado não necessariamente significa ser cadastrado, mesmo identificando os problemas derivados destas dissociações.
Se não fazemos melhor, é porque nos faltam condições de trabalho e somos responsáveis por mais pessoas do que o ideal, situação em nenhum momento é assumida pelo Ministério da Saúde. Em outros países do mundo, com sistemas públicos e universais de saúde, se tem a garantia de populações abaixo de 2.000 pessoas por equipe de APS para se proporcionar o cuidado.
Na verdade, se quer no Brasil fazer um grande laboratório de cobertura universal em saúde com equipes com a saturação de pessoas sob responsabilidade sanitária (4000 ou mais nos grandes centros urbanos), ainda mais com importantes gradientes de desigualdades sociais e de saúde, justificando assim o ideário de organismos multilaterais que dizem que “temos dinheiro suficiente na saúde”. Como se a disponibilidade de pouco mais de 4% do PIB para o setor público em um sistema público e universal de saúde seja suficiente, diferente de outros países com bons sistemas públicos e universais que desembolsam algo em torno de no mínimo de 8% de seu PIB para garantir o direito à saúde com padrão unitário de qualidade e isonomia para todos e todas. E mesmo assim muitos vivendo dificuldades hoje, diante de problemas econômicos e aumento da pressão dos determinantes sociais de saúde sobre à atenção.
A utilização de referências internacionais como subsídio à defesa da proposta do Ministério da Saúde, sem uma melhor contextualização é imprecisa e esconde situações vivenciadas por outros países do mundo. O Reino Unido, desde os anos de 1980, vive críticas à organização de seu sistema de saúde, onde o Relatório Black mostrou as dificuldades do sistema de saúde britânico de cuidar de seus extratos mais vulneráveis socialmente e lidar com os determinantes sociais de saúde. Estudos recentes mostram não só as limitações e os resultados pouco impactantes a longo prazo das lógicas de remuneração por desempenho no âmbito do National Health System (NHS) do Reino Unido, como mostram pioras significativas nos indicadores do sistema de saúde desse país, onde uma das hipóteses é que a organização do sistema baseado em modelos de capitação e com cuidados fortemente baseados numa lógica assistencial sem outras estratégias de abordagem coletiva ou territorial mais desenvolvidas são incapazes de melhores respostas frente ao incremento de desigualdades sociais, novas necessidades de saúde geradas e a pressão decorrente aos sistemas e serviços de saúde.
A nova portaria revoga todos os dispositivos legais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, que agregam fisioterapeutas, farmacêuticos, nutricionistas e diversas outras categorias
Essa indução à pressão assistencial feita pelo novo modelo de financiamento da APS brasileira, sem uma adequada, qualificada e sustentada expansão da APS implicará numa importante onda de precariedade do trabalho na área da saúde, fragmentação do cuidado meramente à assistência, à saúde dentro do modelo biomédico (curar doença restrito meramente à consulta + remédio + exame – isso se estes dois últimos recursos estiverem disponíveis no sistema de saúde com recursos financeiros contingenciados).
3) Perda progressiva de espaço, função e quantidade de ACS pelo Brasil:
Conforme estabelecido na Política Nacional de Atenção Básica de 2017, do Governo Temer, o Ministério da Saúde de Bolsonaro reafirma que ACSs devem ser mantidos apenas em populações com alta vulnerabilidade social, sem qualquer critério objetivo do que seria essa definição. Apesar da previsão orçamentária do reajuste do piso salarial nacional desses profissionais, não há previsão de aumento na quantidade de ACS. Ou seja: não teremos mais novos ACS credenciados em todo o Brasil ou os atuais serão redistribuídos nas ESFs existentes.
Para não criar alarde, importante destacar que não há perspectiva de demissão em massa de ACS com vínculos públicos estáveis (a não ser que a Reforma Administrativa de Bolsonaro seja aprovada no Congresso Nacional). Mas, essa realidade não se aplica aos ACS contratados temporariamente e terceirizados, como ocorreu recentemente, de modo dramático, com ACS do Rio de Janeiro e de Porto Alegre.
4) Desconstrução do trabalho multiprofissional na APS:
A nova portaria de financiamento revoga todos os dispositivos legais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, que agregam fisioterapeutas, farmacêuticos, nutricionistas e diversas outras categorias para apoiar às Equipes de Saúde da Família e oferecer cuidados nos territórios. E, tanto na composição das equipes assistenciais quanto nos estímulos financeiros para as residências, essas categorias foram abandonadas.
A APS do governo Bolsonaro será reduzida às figuras de médicos, enfermeiros e odontólogos.
A multiprofissionalidade, um dos fatores para se proporcionar no SUS o princípio constitucional da Integralidade, está ameaçada, considerando as necessidades de nossa população e os arranjos de organização de equipes de saúde e de apoio matricial que temos desenhado no modelo brasileiro de APS até então.
5) Municípios com dificuldades ficarão com menos recursos e gestores vão competir pelo financiamento:
A remuneração por cadastros, o pagamento por desempenho e o principal programa estratégico Saúde na Hora devem corresponder juntos por mais de 60% de todo recurso da APS do Ministério, mas vão beneficiar prefeituras que já têm maior infra-estrutura, mais equipes e recursos financeiros. Por exemplo, somente as capitais Belo Horizonte, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba e Goiânia respondem juntas por 25% das Unidades Básicas de Saúde (UBS) que aderiram ao Programa Saúde na Hora. Em todo Brasil, apenas 1,1 mil UBS aderiram ao Saúde na Hora, de um total de 42,8 mil. Como um município pequeno e pobre consegue manter uma UBS aberta mais de 12h por dia?
Além disso, apesar do anúncio de um aumento de 10% no orçamento federal da APS, com seu excessivo atrelamento ao desempenho dos municípios, muitas prefeituras poderão perder recursos, em especial a partir do segundo quadrimestre de 2020 – quando passarão a receber por cadastros. O incremento orçamentário na APS não está garantido para os munícios, considerando a histórica dificuldade de execução orçamentária do Ministério da Saúde, as dúvidas sobre o crescimento da economia e a consequente arrecadação da União e evidência de que o Ministério da Saúde vai precisar de emendas parlamentares para garantir inclusive a reposição inflacionária em seu orçamento global para 2020.
Estamos diante de um pacote nacional de Estímulo às Terceirizações e Privatizações dos serviços da Atenção Primária em Saúde
Na prática, poderemos estar diante da retirada de recursos de alguns municípios para que eles possam ser disponibilizados para o aumento em alguma medida de financiamento para outros municípios, o que poderá trazer ainda mais distorções distributivas e uma onda de “competição gerenciada” entre os gestores da saúde. E, em consequência, quebrar lógicas de solidariedade e fortalecer aspectos de barganha dentro de negociações políticas desequilibradas entre os municípios e a União.
A tendência, com esse modelo, é os municípios com maiores dificuldades e poucos recursos ficarem com menos recursos e menor qualidade. Um ataque a mais um princípio constitucional do SUS, a equidade.
6) Estímulo à terceirização e privatização:
Os planos privados de saúde e as empresas privadas estão interessadas no dinheiro público. A Agência para Desenvolvimento da Atenção Primária (ADAPS) aprovada no Programa Médicos pelo Brasil será uma entidade jurídica de direito privado, com poderes paralelos ao próprio Ministério da Saúde e com poder de fazer convênios com outras empresas.
A criação de pacotes de serviços, como na proposta de Carteira de Serviços apresentada, junto com um modelo de Equipes restritos a médicos e enfermeiros, aponta para uma evidente criação de uma APS restrita e seletiva. No contexto de desmonte da Previdência e da Assistência Social e da retirada de até 700 bilhões de reais do SUS (a depender do crescimento da economia) com a Emenda Constitucional 95, não há dúvidas de que estamos diante de um pacote nacional de Estímulo às Terceirizações e Privatizações dos serviços da Atenção Primária em Saúde.
Os antigos “postinhos de saúde” viraram negócios da China. Ou melhor, negócios para Yankes – para lembrar da Amil que criou pacotes baratos com médicos de família após ser comprada pela United Health (a maior seguradora de saúde dos EUA).
Lamentamos imensamente que entidades nacionais que deveriam estar em defesa do direito à saúde, da universalidade do acesso com qualidade e da construção de sistemas públicos e nacionais de saúde, como a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), em vez de uma linha mais bem definida de críticas ao achatamento do financiamento e dos recursos para a saúde, aderiram a uma lógica do “fazer mais com menos”, onde os principais prejudicados que receberão a carga destas mudanças serão os cidadãos usuários, os trabalhadores e os gestores municipais do SUS.
7) Ruptura com a democracia e a participação popular:
Nenhuma das novas políticas foi submetida à apreciação do Conselho Nacional de Saúde. Em especial o novo modelo de Financiamento da APS, segundo recomendação expressa na Lei Complementar 141, precisa da aprovação do CNS. E, importante lembrar que participação popular na gestão do SUS é um dos princípios da Constituição Federal.
Não por acaso, o novo modelo de financiamento da APS lembra princípios da saúde no período da ditadura militar: um modelo médico centrado e de compra de serviços do setor privado. É a “INAMPSização” do SUS.
A população brasileira já apontou que o maior problema do Brasil é a Saúde. Mas, ainda não sabe que pode piorar. E é importante que o povo brasileiro saiba: o governo Bolsonaro destrói os direitos sociais, a democracia, o SUS e, agora, a Saúde da Família.
Resistência. Pelo SUS, Pelo Direito à Saúde e pela Democracia!
*Bruno Abreu Gomes – Pedralva é médico de família e comunidade do SUS de Belo Horizonte (BH), diretor do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais (Sindibel) e Conselheiro Municipal de Saúde de BH. Professor convidado da Faculdade de Medicina da UFMG. É membro da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e da Câmara Técnica de Atenção Básica do Conselho Nacional de Saúde.
**Vinícius Ximenes Muricy da Rocha é médico de família e comunidade, sanitarista, servidor público da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (DF). Preceptor do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS/FEPECS/SES-DF). Professor Universitário. É também membro da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares.
FONTE: BRASIL DE FATO
FOTO: Everson Bressan/ SMCS