As ‘ondas’ do vírus em Fortaleza, dos bairros nobres às áreas mais vulneráveis

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Assim como em outros lugares, o coronavírus teve fases distintas, estudadas pela Universidade Federal do Ceará

Até ontem (27), o Ceará registrou 37.171 casos de covid-19 e 2.654 óbitos, conforme balanço divulgado pela Secretaria da Saúde. Fortaleza concentra 20.875 ocorrências e 1.776 mortes. São 24.092 pessoas recuperadas. O governador Camilo Santana (PT) disse que pretende flexibilizar as medidas de isolamento no estado a partir de 1º de junho.

Assim como em outros locais, a capital cearense viveu movimentos distintos de evolução da doença. Estudo desenvolvido pelo Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), e divulgado durante esta semana, mostra visualmente essa trajetória, por meio de um mapa, disponível no site da instituição.

O coordenador do estudo, o professor Eustógio Wanderley Dantas, do Programa de Pós-Graduação em Geografia, cita “ondas” de contágio que atingiram Fortaleza, inclusive com casos ainda em janeiro. A primeira veio em decorrência do transporte aéreo, com a chegada de turistas ou o retorno de moradores de bairros nobres. Por isso, lembra, no começo chegou a haver comentários de que se tratava de “doença de rico”.

Lógica da desigualdade

“Há uma relação anterior, advinda da relação do aeroporto com a cidade”, diz o professor, citando todo o universo de profissionais que se movimentam naquele local, como pessoal das companhias aéreas, funcionários de logística e empregados de lojas. Ele acredita, inclusive, que isso levará a uma revisão da política de controle sanitário nos aeroportos.

Mapa elaborado pelo Departamento de Geografia da UFC relaciona avanço do coronavírus a aspectos sociais em Fortaleza

Até os primeiros dias de março, observa, havia no máximo um ou dois casos por bairro, até chegar nos considerados nobres. “Você vai para dezenas e centenas, em progressão geométrica. São pessoas que têm vínculos e relações muito intensas com o estrangeiro e visitaram países contaminados.”

A segunda onda considera, no caso brasileiro, o que o professor chama de “lógica da desigualdade”. São – de forma metafórica, ressalta – cidades modernas que convivem com outras cidades, sem acesso a serviços e com maior número de pessoas idosas, áreas insalubres e de difícil isolamento. Ali, a contaminação se dá de forma bem mais intensa.

“De onde vem essa segunda onda? Não vem mais do aeroporto, vem pelo sistema viário da cidade”, observa o professor. Pessoas que trabalham em bairros de maior renda, por exemplo, e que “levam” o vírus para seus próprios bairros. Mas mesmo as áreas de maior poder aquisitivo não são homogêneas, acrescenta o estudioso: há lugares precários também em áreas consideradas nobres, e isso precisa ser considerado.

O que salta aos olhos, segundo o professor, é a quantidade de óbitos: “O maior número de mortes não se situa nas áreas nobres, mas na periferia”. Informe da Secretaria Municipal da Saúde, ainda no início de maio, dizia que “a epidemia se deslocou consistentemente para os bairros periféricos”.

Outro fator, além das condições sociais, é a faixa etária da população. “O contágio muda para um conjunto de bairros populares com percentual elevado de população com mais de 60 anos de idade, como Barra do Ceará e Vila Velha.” Segundo ele, na Barra há mais mortes que nas áreas centrais.

Subnotificação

Há ainda uma “terceira onda”, que transcende a capital. E levou o governo, inclusive, a determinar o fechamento da ligação entre municípios da região metropolitana. Uma dessas cidades é Caucaia, onde mora o próprio professor da UFC, que está a dois quilômetros de Fortaleza.

Com 360 mil habitantes, Caucaia soma 1.251 casos de covid-19 e 71 óbitos, e fica atrás apenas da capital. Segundo o Departamento de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde, até ontem havia 734 pessoas curadas, 59% dos casos.  Formada por 19 municípios, a região metropolitana tem 4,1 milhões de habitantes, sendo 2,6 milhões em Fortaleza.

O professor também chama a atenção para a subnotificação de dados. E lamenta que o Brasil não tenha adotado uma política de testagem em massa – ressalva que o Ceará é o estado com maior número de testes por 100 mil habitantes. “Estamos perdendo muito tempo. Não há ainda uma discussão séria (sobre como será feita a saída da crise). Há um ruído do qual não conseguimos sair”, diz, referindo-se à relação entre a União e os estados. “Como eu entrarei na sala de aula com 40, 50 alunos, como dar-se-á essa relação?”, questiona.

Dantas lembra que Fortaleza tem um “histórico” de problemas sanitários concentrados em áreas populares. Ali é comum a incidência de doenças como dengue, chikungunya e zika, entre outras. Ele cita ainda um dado histórico, contando que a cidade já enfrentou ocorrências sérias, como a causada pela varíola, que em 10 de dezembro de 1878 chegou a causar 1.004 mortes em 24 horas – o episódio ficou conhecido como o Dia dos Mil Mortos.

Na semana passada, o Comitê de Enfrentamento à Covid-19 da Faculdade de Medicina da UFC divulgou duas cartas públicas pedindo medidas mais contundentes. Em um delas, pede implementação urgente de protocolos sanitários em bairros periféricos da capital, afirmando que muitos óbitos já ocorrem “de modo diferencial” em bairros de maior vulnerabilidade.

FONTE: REDE BRASIL ATUAL
FOTO: Escola de Saúde Pública do Ceará

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