‘Não somos soldados’: mulheres e o cuidado na área de saúde

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Na linha de frente contra a Covid, mulheres estão mais expostas aos ris­cos aumentados de contaminação e riscos ocupacionais

“Os cuidadores são a maioria mulheres, não são soldados” afirmou Sandra Laugier ao Jornal francês Reporterre em março deste ano[1]. E prossegue “o trabalho das mulheres permanece desvalorizado”.

A filósofa francesa se referia à inapropriada utilização da linguagem bélica da metáfora da guerra para falar sobre quem está à frente no trabalho de cuidado no enfrentamento à pandemia da Covid-19 na área de saúde: na sua imensa maioria mulheres.

A responsabilidade pelo trabalho de cuidado em geral, sustentáculo da vida em so­ciedade, tanto o remunerado profissionalizado, como o não remunerado na esfera privada, é ainda atribuído de forma desigual e prioritária às mulheres, fruto da divisão sexual do trabalho.

A divisão do trabalho com bases sexistas foi construída sob pilares ideológicos patriarcalistas, fincados, por um lado, no ideário binarista sexista de que existiriam trabalhos de homens e trabalhos de mulheres. Por outro lado,  pelo critério hierárquico na falsa premissa de que um trabalho de homem “valeria” mais do que um trabalho de mulher.

Essas bases ideológicas, apesar de calcadas em premissas errôneas, são as que ainda sustentam e naturalizam um processo específico de legitimação do ideário patriarcalista na acepção  de limitação do gênero ao sexo biológico, reduzindo as práticas sociais a “papéis sociais sexuados”[2].

E, nas experiências concretas de mulheres, somam-se a esse, outros marcadores de opressão, como os relacionados à classe e raça.

As reflexões aqui propostas referem-se à abordagem das marcas de desigualdade de gênero presentes em profissões de cuidado na área de saúde.

Em nível global, cerca de 70% das equipes de trabalho em saúde e serviço social são compostas por profissionais do sexo feminino, incluindo, médicas, en­fermeiras, parteiras e trabalhadoras de saúde da comunidade[3].

No Brasil, o trabalho feminino corresponde em torno de 80% do total de trabalhadores na área de saúde nas principais categorias diretamente envolvidas em ações de atendi­mento de saúde da população[4].

E, paradoxalmente, na mesma medida em que essas profissões passaram nas últimas décadas pelo fenômeno da “feminização”, decresceram para tais profissões a valorização, a remuneração e o prestígio social, evidenciando, também na área da saúde, a desigualdade de gênero verificada em outros setores da sociedade.

Mulheres nos cuidados de Enfermagem

ENFERMEIRA NO HU DO RIO DE JANEIRO. FOTO: RAPHAEL PIZZINO/ COORDCOM UFRJ

As mulheres representam em torno de 85% do total de profissionais nos serviços de enfermagem (enfermeiros/as, técnicos/as e auxiliares)[5].

São esses os/as profissionais que executam o traba­lho cotidiano direto de cuidado e atenção, de administração de medicamentos e limpeza dos corpos, o que é absolutamente essencial na recuperação de pacien­tes.

A essencialidade, contudo, é contrastada pelo fato de que são profissionais, na imensa maioria mulheres, que trabalham em condições historicamente precárias, em turnos exaustivos e sobreposição de contratos de trabalho, escassez ou inadequação de equipamentos de proteção individual (EPIs), bastante evidenciadas pela pandemia. Convivem com pauta de lutas históricas, como a jor­nada de 30 horas e melhores condições remuneratórias.

O Observatório da Enfermagem tem registrado um crescimento recorde de óbitos de profissionais de enfermagem em casos suspeitos ou confir­mados de coronavírus, comparativamente a outros países.

Com a pandemia, são profis­sionais que estão ainda mais expostas à sobrecarga física e psicológica, na rotina diária de convivência com o medo de se contaminarem e de levarem o contágio ao ambiente familiar.

Mulheres nos cuidados de Medicina

A área profissional de Medicina é a única categoria da saúde que não apresenta o mesmo quantitativo majoritário de mulheres, representando um pouco menos da metade (47,5%) do total de médicos no país.

Contudo, se por um lado a Me­dicina é a categoria da área de saúde que tem melhor remuneração e valorização social, por outro, também não escapa à forte marca da desigualdade de gênero.

Pesquisas têm demonstrado uma significativa desigualdade salarial entre médicas e médicos.

Na disputa pelos maiores rendimentos, as médicas brasileiras têm quatro vezes menos chance do que os colegas homem.

Mesmo quando as pesquisas fazem ajustes de dados para fa­tores de trabalho como carga horária, número de plantões, trabalho em consultório, tempo de prática e especialização, a desigualdade salarial entre homens e mulheres permanece, ficando evidenciado que a desi­gualdade salarial se deve unicamente à persistente desigualdade de gênero.

Também é dado relevante observar que, ainda que as mulheres médicas sejam quase metade dos profissionais da categoria, elas são notória e absolutamente sub-representadas em espaços decisórios dentro da profissão, como no Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Brasileira e a Academia Nacional de Medicina.

Mulheres nos cuidados de apoio na saúde

Nas funções essenciais de apoio para os cuidados de manutenção dos ambientes de saúde, também as mulheres são maioria, muitas em sis­tema de terceirização em contratos precários e desvalorizados.

São recepcionistas, atendentes e profissionais de limpeza, mas cuja invisibilização se evidencia pelo fato de serem profissões para as quais sequer existem dados sistematizados que permitam aferir objetivamente as condições de trabalho e os vieses de gênero, conforme acentuado no artigo acima mencionado.

São as mulheres, portanto, que estão na linha de frente do combate à Co­vid-19 na área de saúde.

São elas que estão diretamente envolvidas nos procedi­mentos de cuidado aos indivíduos e, portanto, mais expostas, não apenas aos ris­cos aumentados de contaminação, mas, também, aos demais riscos ocupacionais.

Menciona-se, ainda, o grave problema de omissão dos ambientes públicos e privados de saúde em propor­cionar afastamento dos/as profissionais pertencentes a grupos de risco, incluindo gestantes e lactantes, muitas das quais tendo que recorrer à Justiça para terem esse direito garantido.

É fundamental compreender os ideários que sustentam e naturalizam os focos de opressão nas relações sociais, que se revertem em desigualdades inaceitáveis.

Reforça-se o teor da Agenda 2030 da ONU, pautada em um consenso internacional sobre a importância crucial da igualdade de gênero e a sua contribuição para a realização dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Para além das palmas ou da metáfora deslocada de “condecorações de guerra”, é premente que se lancem luzes sobre essa extensa rede profissional na área de saúde, enfrentando, de forma séria e responsável, a questão correlata da desi­gualdade de gênero.

E a pandemia nos ensina o quanto isso é urgente!

*Maria José Rigotti Borges é Juíza do Trabalho da 10ª Região. Mestranda em Sociologia pela Universidade de Coimbra e  membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia).


[1] Tradução livre. Disponível em: https://reporterre.net/Le-coronavirus-nous-fait-comprendre-que-la-vulnerabilite-d-autrui-depend-de-la-notre. Acesso em 25/05/2020

[2] HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas Configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Cadernos de Pesquisa 37, nº 132, p. 595-609, 2007

[3] United Nations Population Fund. Disponível em: https://www.unfpa.org/sites/default/files/resource-pdf/Portoguese-covid19_olhar_genero.pdf. Acesso em 26/05/2020

[4] Nota Técnica Diest n. 33. Os efeitos sobre grupos sociais e territórios vulnerabilizados das medidas de enfrentamento à crise sanitária da Covid-19: Propostas para o aperfeiçoamento da ação pública.. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200408_nota_tenica_diest.pdf. Acesso em 26/06/2020

[5] MACHADO, Maria Helena (Coord.) (2017) Perfil da enfermagem no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro : NERHUS – DAPS -ENSP/Fiocruz

FONTE: CARTA CAPITAL
FOTO: BRUNO CECIM/AG.PARÁ