Principais impactos foram nos itens da alimentação no domicílio, mas isso não tem relação com o distanciamento social
Na última quinta-feira 9, ao comentar o aumento dos preços do arroz, o presidente Bolsonaro citou críticas que recebeu por falar de “vírus e emprego” quando outros diziam “fique em casa e a economia vem depois”. A relação que ele insinua entre as medidas de distanciamento social e o aumento dos preços tem sido repetidamente evocada para atacar opositores do presidente nas redes sociais frequentadas por seus apoiadores. “Fique em casa” contra o vírus? “A conta chegou”.➤ Leia também:Bolsonaro associa alta do arroz a auxílio emergencial: “Estão comendo mais”Bolsonaro pede “patriotismo” a donos de mercados ao comentar alta da cesta básicaGuedes cobra esclarecimentos do Ministério da Justiça por notificar supermercados
Houve até “especialistas” explicando os preços mais altos como resultado do aumento dos custos unitários provocado pela redução das vendas na esteira das medidas de distanciamento. Isso certamente ocorreu em setores e locais, mas estaria aí a explicação central para o aumento do custo de vida no país que tem afetado especialmente as famílias mais pobres?
Basta analisar a evolução dos preços dos distintos itens desde o início da pandemia para facilmente constatar que não. Os principais impactos ocorreram em itens da alimentação no domicílio – arroz, carne, leite e óleo –, que respondem por grande parcela das despesas das famílias, e são fornecidos por grandes complexos agroindustriais cujas produção e vendas não só não caíram com o distanciamento social, mas cresceram nos últimos meses. Como, aliás, declarou o próprio presidente, “o campo não parou”.
Situação não tem nenhuma relação com o distanciamento social, mas, sim, com os altos preços no mercado internacional, a desvalorização do real e o fim dos estoques reguladores no País
De fato, não parou, e viu os preços de seus produtos crescerem muito acima da inflação geral, em muitos casos mais de 10% em apenas seis meses, gerando lucros elevados para os produtores. Essa situação não tem nenhuma relação com o distanciamento social, mas, sim, com os altos preços no mercado internacional, a desvalorização do real e o fim dos estoques reguladores no País.
Outros setores que registraram aumentos importantes de preços são o de cimento e de produtos eletrônicos que, assim como o de alimentos, ao invés de reduzirem, elevaram suas vendas desde o início da pandemia. Com efeito, parte do auxílio emergencial pago pelo governo foi direcionado a gastos atípicos nesses setores que, dominados por grandes oligopólios, conseguem aproveitar a expansão pontual na demanda para elevar os preços e aumentar suas margens.
Em compensação, os preços praticados justamente pelos setores mais afetados pelos aumentos de custos e da incerteza decorrentes das medidas de distanciamento, que em sua maioria atuam no setor de serviços prestados às famílias e que contam com grande participação de micro e pequenas empresas e de profissionais autônomos, não só não cresceram mais que o índice geral, como, em razão da queda da renda de parcela da população que normalmente usa esses serviços, em muitos casos caíram ou mesmo despencaram.
Ou seja, enquanto os setores que mais aumentaram seus preços estão entre aqueles menos impactados pelas medidas de distanciamento social, aqueles mais impactados não aumentaram ou até reduziram seus preços. A relação entre o “fique em casa” e o aumento de preços que tem pressionado o custo de vida dos mais pobres é, portanto, mentirosa. Isso não impede que ela circule amplamente entre os apoiadores do presidente como evidência de que ele “tinha razão”.
FONTE: CARTA CAPITAL
FOTO: TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL