Durante uma crise política, econômica, sanitária e social, agravada pelo COVID-19, o coronavírus – mas não causada por ele, será retomado adiante –, na qual notícias sobre tratamentos falsos e caseiros, ataques de milícias virtuais, teorias conspiratórias delirantes para conseguir manter a manutenção do poder e do status quo, ganham cada vez mais espaço e leitores nos smartphones da população, parece não haver saída e que se está preso numa contínua espiral de catástrofes. Porém, mais do que nunca na história recente, é necessário um regresso ao pensamento, à teoria, à filosofia, direcionar a atenção a reflexões e ao conceito de utopia. A utopia deve ser apreendida num movimento dialético, pois nada acaba em si, é mundo é uma constante revolução. Não o conceito comum de utopia, mas sim uma reformulação melhor desenvolvida e mais processual, compreendê-lo como uma parte de um processo enquanto estado mental.
É conhecido e divulgado por campanhas que durante a pandemia as pessoas cuidem de sua saúde mental, pois já é dado que aos impactos a saúde mental pode ser maiores do que o do coronavírus após a pandemia. Os modos de cuidar da mente consistem, basicamente, em evitar o bombardeamento de informações, não rotular os contaminados, aprender e ensinar a lidar com emoções, ter paciência com os idosos, entre outros diversos. Porém, até o momento que esse escrito é realizado, em uma rápida recapitulação de poucos meses ou horas atrás, o Brasil ultrapassou a Itália e a Espanha em números de casos de contaminação, assumindo a terceira colocação mundial, sem contar os casos subnotificados; ocorreram trocas de ministros, principalmente dois no Ministério da Saúde; o paraquedista no poder tentou alterar a bula de um remédio por achismo; um ex-presidente pede desculpas por ter confiscado parte do saldo de cadernetas de poupança e contas-correntes na década de 1990, isso é, 30 anos depois; os números expõem que a letalidade do COVID-19 chega a ser dez vezes maior em regiões com os piores índices sócio-econômicos, colocando em foco a desigualdade estrutural histórica; autoridades em cargos democráticos flertam com modelos e ideais neofascistas; gurus conspiratórios e seus discípulos espalham notícias falsas de um suposto plano de dominação global por comunistas – remete a Getúlio –; entre outras barbáries da modernidade.
A sociedade contemporânea realmente foi puxada, ou caminhou, para uma espiral de desastres, porém esse movimento não se deu de forma acidental ou por agentes secretos infiltrados e conspiradores que manipularam meio mundo para destronar vossa excelência e seu governo impecável, seria irônico se não fosse trágico, mas a real situação nacional – e global – é consequência de um planejamento esperado por parte dos ideais neoliberais. A pandemia do COVID-19 somente, e nada além disso, facilitou a revelação do sistema que age e se deteriora há décadas, o vírus o desnudou. O rei está nu! O vírus não causa uma pandemia numa sociedade que já não estivesse pronta a recebê-lo. O retorno à história é necessário, e sempre foi, para compreender a atualidade. No caso, após os “anos dourados” de ascensão do capitalismo (1945-1975) – já sendo enfraquecido nos finais da década de 1960, o sistema então perfeito e como modelo o estadunidense, começa a sofrer abalos, como as revoluções do Maio de 68, que ocorreram contra o sistema de modernização e racionalização da produção de bens em nome de uma tecnocracia de imperativo econômico-científico para o progresso industrial e necessidades militares; as crises do petróleo em 1973 e idos da década de 1980; a guerra falida estadunidense no Vietnã, a lista é extensa. Em suma, o ritmo da construção de políticas liberais, e ultraliberais, o ataque às ciências humanas e artísticas, às ciências no geral, ao pensamento crítico, o crescente grau de informalidade na esfera do trabalho, criando uma face de “uberização”, e o descuido e sucateamento da área de saúde pública, prepararam terreno para o vírus, ou seja, é perceptível a construção da arquitetura da tragédia.
Assim como Weber, sociólogo alemão atuante principalmente no início do século XX, propôs que a análise sobre a realidade acontece sobre fragmentos dada sua grandeza, e em tipos ideais, isso é, tipos puros para se tornarem objeto de análise, não que tipos puros realmente existam na sociedade moderna. Há, no mundo contemporâneo, uma ideologia a favor do progresso a qualquer custo e uma crescente burocratização da sociedade, há também um processo de secularização, denominado por ele como “desencantamento do mundo”, isso ocorre concomitantemente ao crescimento do modo industrial capitalista. Outro fator a incorporar no debate é como se dá a acumulação capitalista, isso é, quais os seus fundamentos, a essa questão pode ser respondida – de modo a exemplificar tipos ideais, mas não limitando seu significado – ao modo de expropriação da força e consequente valor de trabalho do trabalhador. Dado esse cenário, urge nos dias atuais, o retorno à teoria, à reflexão e a introspecção social, pois a capacidade de imaginar um outro lugar, é essencial, um não-lugar, uma utopia. O retorno ao conceito de utopia é originado pela constatação de que a atualidade é inaceitável, é, assim, necessária uma reconstrução dos parâmetros baseado no humanismo e na ética.
O conceito de utopia nos dicionários correspondem ao imaginário, ao irreal, a fantasia e a projeção de algo impossível. Ou a um governo idealizado como supõe Thomas More, em 1516, no livro homônimo. Porém, deve-se compreender que essas definições ocorrem na ideia de utopia aplicada à realidade, são tentativas diretas da aplicação utópica no mundo real, essa concepção de utopia direciona, quase que obrigatoriamente, à distopias compostas por governos autoritários, sendo assim, a distopia é a consequência da utopia diretamente aplicada na realidade. Na esfera da sétima arte, distopias são tratadas pelo exagero de uma catástrofe ou da tecnologia, na realidade, a distopia pode se originar pelo excesso de burocratização e do “progresso” exploratório.
A utopia integrada à dialética, isso é – simplificadamente, pois o processo é complexo –, a concepção de uma ideia (tese), a saída e transformação em outra coisa (antítese) e o retorno, porém concreto ao ser, basicamente constituí a dialética, é preciso que se compreenda utopia como a tese, uma concepção das ideias, um estado mental, uma teoria, para então se transformar em algo, na ação, na mudança e na revolução, para então retornar mais concreta às ideais após aplicação real, o ponto principal é que a aplicação consiste no segundo ponto, o da antítese e o da ação, e não na tese, que é a organização artística e racional a priori. A urgência do retorno à teoria é essencial para transformações nas ações, durante e no mundo após a pandemia. O proposto aqui, é uma reformulação, ou uma recolocação, da utopia e de seu espaço.
Os movimentos de Maio de 68 podem ser usados como exemplos da concepção utópica e das posteriores ações concretas. As revoltas de 68, principalmente na França, não ocorreram por motivações econômicas, como alguns marxistas vulgares que reduzem tudo a esfera econômica podem acreditar, pois o mundo ainda estava nos “anos dourados” do capital, mas foram motivadas por inspirações contra a modernização e a extrema racionalização do sistema educacional para a produção de bens de consumo orientados por um capitalismo mecanicamente organizado, era uma crítica à tendência tecno-burocrática aliada ao progresso industrial e necessidades militares. As revoluções de 68 seguiam a mão oposta, e por possuir esse aspecto anti-modernização capitalista, adquirem um caráter Romântico, ao ver no passado, elementos essenciais para um futuro diferente e possível. Possuíam a motivação e a inspiração utópica e romântica, eram, de certo modo, dotados de um espírito romântico revolucionário. Cabe aqui explicar que o conceito adotado de Romantismo vai além do comumente aprendido de somente uma escola literária, é, sim, uma forma cultural presente até os dias atuais. A historia não se repete nos mesmos moldes, seria difícil esperar um movimento como de 68 na atualidade, porém, tais movimentos abriram as portas, ou fortaleceram, movimentos atuais que vão na contramão do “progresso” contemporâneo, como os movimentos ecológicos, feministas, pacifistas, entre outros. A “utopização” é parte de uma visão romântica como parte fundamental do processo libertário e revolucionário.
A utopia tange ainda outra esfera essencial às transformações, tange a esfera da arte, e dentro dessa, habita a estética e a ética. A arte é utópica e revolucionaria através de um efeito catártico. Catarse no dicionário corresponde a uma purificação, uma solução de um problema por um processo terapêutico, porém ela não termina nesses elementos, pois para Lukács, filósofo húngaro, ao absorver uma obra de arte, num fluxo das esferas da estética e da ética, o ser humano sai engrandecido, potencialmente mais humano, sendo capaz de redirecionar suas ações, privilegiando ações mais autênticas que corroboram aos interesses coletivos. Desse modo, a utopia pela arte serve de instrumento para o rompimento de um momento, ou situação na sociedade, e também para a construção de um novo, como também realiza ao sujeito.
Em suma, o momento que o mundo vive é surpreendente para todos, sem dúvidas, porém, para alguns empresários, como os que discursam abertamente pregando o retorno ao trabalho, pois para eles mais vale a economia não parar em nome de alguns milhares de mortos, é somente uma fase passageira que nem merece tanta atenção, outros chamam de “gripezinha”. Na realidade, o que eles não querem, ou podem, admitir publicamente é o medo. Medo, pois o isolamento social proposto pela pandemia corresponde a uma greve geral a nível global involuntária, isso afeta e corrói os alicerces de uma economia baseada na exploração da força de trabalho e na expropriação. Para além dos direitos trabalhistas que estão se deteriorando nas últimas décadas, de forma mais intensa no século atual, buscam nesse momento de pandemia a expropriação da capacidade utópica de pensar, pois como foi supra citado, o pensamento utópico consiste numa fase de um processo de transformação da realidade social. Se a realidade continuar a traçar o caminho que vem trilhando há anos, será apresentado o além dos círculos do Inferno dantesco, um subsolo ainda não imaginado pelo poeta florentino, à sociedade. Esse contexto político-social remete a alguns escritos de Antonio Gramsci, como um publicado no jornal L’Ordine Nuovo, em 1921 que dizia “A tarefa dos operários e dos camponeses revolucionários é a de aproveitar o período de relativa paragem, determinada pelos dissídios internos dos bandos fascistas, para infundir nas massas operárias e inermes uma clara consciência da situação real da luta de classes e dos meios aptos para vencer a arrogante reação capitalista”. Pode-se concluir, então, que a utopia como o estado mental de um processo revolucionário é de suma importância, o pensamento utópico é necessário à prevalência da humanidade. O pensar utópico é, sempre, mas principalmente durante uma pandemia, um modo de manter a saúde mental, isso é, pensar em transformação e no novo é parte da catarse. Talvez seja o momento último para ser utópico e Romântico e garantir uma terceira possibilidade além do binarismo normalmente proposto entre tradição ou modernidade e progresso. A utopia, o espírito romântico e a arte como formas culturais, resistem e agem como parte de um processo de transformação social.
Maurício Brugnaro Júnior é graduando de Ciências Sociais pela UNICAMP
FONTE: CARTA MAIOR
FOTO: REPRODUÇÃO