A pandemia é uma doença de classe: a catástrofe brasileira ainda está por vir

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Em maio, quando creio que o isolamento nas metrópoles será flexibilizado, a contaminação se acelerará entre os mais pobres e para o interior

Em 11 de janeiro, a China divulgou primeira morte pelo novo vírus causador de síndrome de infecção respiratória grave (SARS). Um mês depois, registrou-se a primeira morte na Europa (França). Em 21 de fevereiro, a doença surgiu no Irã, sem origem definida. A partir daí, Itália e Espanha experimentam elevação dos casos com óbitos.

Na segunda semana de março, países da América do Sul iniciaram políticas de isolamento: Venezuela, Equador e Peru implementaram isolamento total, enquanto Colômbia e Costa Rica fecharam fronteiras. No Brasil, o isolamento nas grandes cidades encontrou respaldo em firme atuação do Ministério da Saúde, contrariando-se a vontade presidencial de manter a “normalidade”.

Ainda na segunda semana de março, a China anunciou neutralização das infecções locais, mostrando-se aos demais países que o protocolo de isolamento social produziu resultados rápidos. Na segunda semana de abril, as medidas de isolamento social no Brasil começam a mostrar enfraquecimento, levando-se o país à condição de laboratório para defesa da “racionalidade dos mercados” frente à “racionalidade de preservação de vidas”. Para a primeira, o custo social do isolamento não compensaria o custo social das mortes por doença.

A batalha do humanismo na guerra do grande capital

A resposta da China a uma explosão epidêmica foi a de defesa em ambiente de guerra. Mesmo que os EUA não tenham sido objeto de um ataque, o governo chinês desencadeou protocolo de resposta a um ataque biológico. Ainda que o Presidente Trump tenha tentado inverter esta lógica com o slogan “China Virus”. Sabe-se que a mentira faz parte da guerra híbrida que, aliás, tem se intensificado entre os dois países.

A contenção chinesa, portanto, visou preservar a população de um ataque externo. A economia, com elevado grau de planejamento, deve responder ao esforço de guerra, não ao contrário.

A Europa, por sua vez, interpretou a crise a partir de lentes iluministas, alinhadas com a resposta que conhecem diante de crises comparáveis – a defesa do Estado de Bem-Estar Social. Pois foi na Europa que a “racionalidade dos mercados” experimentou revés. O deep state norte-americano não esperava por esta reação, apostando-se numa defesa natural do patrimônio pelos mais ricos.

A atitude europeia se explica pela maior distribuição de riqueza. Lá, mais do que em outros lugares, as fronteiras entre o tratamento recebido pelos ricos e pobres não é clara. Ou seja, a “lógica dos mercados” atingiria as elites europeias, impondo-se perdas humanas não suportáveis. De outro lado, EUA e Inglaterra, residência dos principais bancos ocidentais, perceberam a necessidade de abreviar o máximo possível o sacrifício econômico da doença.

No Brasil, a fragilidade da infraestrutura de saúde não permitiu ao grande capital associar-se de imediato à “racionalidade dos mercados”. Havia o temor de que as elites, localizadas em enclaves avizinhados por aglomerações miseráveis, pudessem ser expostas ao caos hospitalar. Por isso conviveram, ao menos durante umas poucas semanas, posições contraditórias no governo brasileiro.

Enquanto representantes das oligarquias tradicionais, incluindo-se latifúndio, defenderam a política do isolamento total, forças alinhadas com os EUA e a “racionalidade dos mercados” insistiram na tese contrária. Infelizmente, no Brasil, vai triunfar a lógica norte-americana em detrimento da histórica referência brasileira à social-democracia europeia. O Brasil escolherá ser Miami, não Paris. A ultradireita e o ultraneoliberalismo vão triunfar ainda mais uma vez por aqui. Vejamos por quê.

‘Os pobres e os velhos que se danem, a economia sairá melhor sem eles’

A propagação da epidemia em uma população é fenômeno que depende de causas naturais e sociais. Dadas as naturais, a disputa pelas convenções coletivas torna-se o botão de controle sobre o comportamento social. Por sua vez, a realidade socialmente construída, em sua dualidade material e imaginária, se dá no espaço concreto e no tempo histórico.

Ou seja, a dinâmica de propagação da epidemia tem se dado dentro de enclaves prósperos, localizados no interior de conurbações urbanas precárias: São Paulo e Rio de Janeiro, compreendendo-se ainda outros dispersos pelo território. Com isso, dentro dos enclaves se difundiu, contaminando-se primeiro os escalões mais elevados da elite em nosso país. A difusão para os territórios mais pobres, fora do enclave rico, tem sido adiada pela política de isolamento.

Igualmente adiada tem sido a propagação para as cidades de menor porte. Neste quesito, como o fluxo de alimentos se dirige para as cidades maiores, e a demanda por serviços profissionais tem sido adiada, as cidades menores têm sido blindadas pela política de isolamento. Qual seria o momento adequado para se suspender o isolamento no país? Enquanto a população prioriza a segurança da saúde, as elites em algum momento passarão a criticar as medidas que inicialmente defenderam.

No topo da hierarquia, pelas “melhores famílias”, se fará o cálculo da capacidade de leitos reservada para os melhores planos de saúde e, neste momento, se tomará a decisão de relaxamento do isolamento. Tão importante quanto a vida dos familiares, cumpre-se proteger o patrimônio. Há urgência em se recuperar a “normalidade”, de maneira a atrair novamente os estrangeiros para os “mercados” e, com isso, recuperar as perdas.

Em rápida conta, é possível se estimar a ordem de grandeza da situação atual, compreendendo-se por que o isolamento terá termo no Brasil a partir do início de maio de 2020.

Tomada como exemplo, na cidade do Rio de Janeiro a população nos territórios mais ricos (Barra da Tijuca+Zona Sul-Vidigal-Rocinha) soma cerca de 1,3 milhão de pessoas. Destes, cerca de 300 mil pessoas residem em ambientes para rendas acima de 20 salários mínimos (SM) e 60 mil pessoas entre os mais ricos possuem renda mensal média acima de 30 SM.

Nos mesmos territórios cariocas, contabilizaram-se 636 casos de infecção pelo vírus até a data em que escrevo este artigo. Como a testagem só é realizada até aqui para quem procura hospitalização, estima-se que o número de infectados total seja da ordem de 20 vezes o número de internados.

Com isso, o número de infectados entre os mais ricos (acima de 30 SM) se situa hoje entre 10 e 20% do contingente no mesmo estrato social. Se tomada a população com renda acima de 20 SM (que também viaja ao exterior), o percentual cai para 5% (um em cada 20) do total acima de 20 SM.

Em contrapartida, o número de leitos disponíveis hoje na iniciativa privada nos bairros mais prósperos considerados está acima de 26 mil. Ou seja, 10% do total da população mais abastada da cidade do Rio de Janeiro.

Imaginando-se que nas próximas duas semanas o número de infectados nas camadas mais elevadas da sociedade dobrem, as empresas de saúde privada poderão assegurar capacidade de atender as elites cariocas sem prejuízo de continuidade.

No início de maio, quando o isolamento for flexibilizado nas grandes cidades, a contaminação se acelerará, causando-se rápida difusão para os mais pobres e para as cidades do interior. Nesta “segunda onda”, a epidemia terá saído dos jornais, os velhos irão morrer sozinhos, os pobres irão morrer desamparados. Nas ruas e nas cidades durante muito tempo ainda haverá o temor da doença entre os mais pobres.

A partir de maio de 2020, as bolsas de valores do mundo inteiro irão comemorar com euforia a superação da epidemia. Solto aos quatro ventos, o potencial de compras das elites irá mover os moinhos da ilusão de normalidade. O que ocorre com os pobres, aquilo que se passa no interior, não figura nas manchetes.

No entanto, consumidos por um mal que nunca se acaba, os brasileiros pobres irão experimentar níveis superiores de escassez e sofrimento. A desigualdade irá se ampliar com o avanço do subemprego. O ultraliberalismo voltará a impor pressão sobre a agenda nacional. Neste momento, só se pode esperar centralização de poder como instrumento para a continuidade das “reformas” no país.

*Marco Aurelio Cabral Pinto é professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ e doutor em economia pelo IE/UFRJ.

FONTE: CARTA CAPITAL
FOTO: ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

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