O problema da vacina está umbilicalmente conectado à questão da fome, do desemprego, das dívidas e bloqueios criminosos
Mais de um ano depois do início desta pandemia, uma coisa é certa: só a vacinação em massa, pública e gratuita é a solução para revertermos este quadro de mortes e de tragédias.
Na teoria, já sabemos qual deve ser a resposta. Na prática, empresas e governos do mundo todo estão travando uma guerra paralela à guerra contra o vírus.
A guerra pela quebra da propriedade intelectual de produção da vacina tem sido o grande conflito que expõe as desigualdades entre o Norte e o Sul Global em meio a pandemia.
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Aqui estamos falando do chamado “nacionalismo da vacina”, caracterizado pela reprodução do apartheid médico existente entre os países imperialistas e os países da periferia do mundo.
Segundo os dados da Oxfam (2020), com 14% da população mundial, os países ricos compraram 53% do estoque global de vacinas prometidas pela indústria farmacêutica. Muitos desses países já garantiram cerca de três doses para cada um de seus habitantes. O Canadá, por exemplo, possui o equivalente a cinco doses para cada um de seus cidadãos.
Por outro lado, o mesmo estudo aponta que somente uma a cada dez pessoas dos países pobres conseguirão receber o imunizante até o fim de 2021. Com este ritmo de vacinação, a população dos países de renda média será imunizada em 2022, e a dos países pobres em 2023 ou 2024. Uma tragédia.
O quadro abaixo, da plataforma Our World in Data, coordenada pela Universidade de Oxford, mostra a distribuição das doses de vacina administradas para cada 100 habitantes de cada país. Os países em azul escuro (Norte Global) possuem mais de duas doses do imunizante em estoque para cada habitante.
Mas o que explica e como podemos resolver este problema? Este apartheid médico entre o Norte e o Sul Global tem suas raízes na propriedade privada.
O estudo “Alerta Vermelho: vacina popular“, produzido pelo Instituto Tricontinental, mostra que a produção em larga escala do imunizante é impedida pela vigência do regime de patentes, que garante às grandes farmacêuticas a propriedade intelectual da receita (know how e insumos) de produção da vacina.
Não por acaso, Índia e África do Sul lideram o apelo à Organização Mundial do Comércio (OMC) para que sejam suspensas, temporariamente, as patentes relativas ao imunizante e aos insumos para o combate ao covid.
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Contudo, graças aos bilionários investimentos públicos em seus laboratórios privados, são exatamente os países do Norte Global os principais defensores do regime de patentes, legitimando, portanto, o direito ao monopólio e à realização de lucros exorbitantes em meio a uma pandemia.
Toda extrema pobreza é irmã gêmea da extrema riqueza. Esse é o resultado da tendência estrutural de concentração e centralização de capitais. Ou seja, este apartheid médico revela a natureza imperialista do Norte Global, que coloca os lucros de sua burguesia acima da vida de 7,7 bilhões de seres humanos.
A saída para esta catástrofe mais-que-anunciada só pode ser coletiva, coordenada globalmente. Ou todos ganham esta corrida pela vacina, ou ninguém ganhará. Simples assim.
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Para além dos Estados Unidos, do Reino Unido e da União Europeia, o Brasil é o único país fora do Norte Global que também não defende a quebra temporária das patentes, contribuindo para a manutenção da lógica do lucro acima da vida, estando ao lado dos monopólios internacionais e sendo cúmplice da tragédia humanitária.
Cabe lembrar que este país latino americano poderia estar, inclusive, produzindo vacinas em larga escala caso houvesse o compartilhamento das informações e métodos de fabricação do imunizante. Porém, a orientação da atual política externa brasileira, de subordinação passiva ao imperialismo, impede que o gigante latino esteja cooperando junto à outras nações para uma solução mais rápida desta crise sanitária.
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O Brasil deveria estar ao lado dos mais de 100 países que endossam esta proposta junto à OMC. Em termos de vacina, além do fim das patentes, também devemos apostar na iniciativa Covax Facility, coalizão de mais de 160 países na Organização Mundial da Saúde (OMS) para que haja uma distribuição justa e equitativa das vacinas no mundo.
Entretanto, ainda que seja a medida mais emergencial, só a produção de vacinas não resolve o problema. Como nos explica Vijay Prashad, além do apartheid médico, há também o apartheid do dinheiro e da alimentação. Juntos, estes três apartheids estruturam as sociedades em toda parte do mundo, o que significa dizer que qualquer esforço para superar essas crises deve contemplar políticas de emprego, de renda, de saúde pública e de soberania alimentar.
Diante desse diagnóstico, muitos são os desafios se impõem ao conjunto das organizações políticas, movimentos populares, governos progressistas, e a todas e todos que defendem a vacina como um bem da humanidade, luta esta que tem, por essência, um caráter anti-imperialista.
Foi esse o esforço realizado pela Jornada Internacional de Luta Anti-imperialista, articulação que reúne diferentes redes internacionais de movimentos populares e partidos políticos, entre os dias 7 e 11 de abril.
A Ação Anti-imperialista pela Vida também contou com a participação de outras redes, campanhas e coletivos de saúde, convocando para ações simbólicas nas ruas e nas redes sociais para denunciar o controle exercido pelas grandes corporações transnacionais da indústria farmacêutica e dos países que concentram o estoque de vacina, além de manifestar a solidariedade aos trabalhadores da saúde e aos familiares das milhões de vítimas da covid-19 em torno do lema: ”Vacina e saúde pública e gratuita para todas e todos, em todo o mundo, já!”
Identificamos alguns desafios para dar continuidade ao processo de articulação da luta anti-imperialista, dando continuidade às lutas que construímos entre os dias 7 e 11 de abril.
Primeiro, a necessidade de combinarmos as diferentes formas de luta, no plano ideológico, institucional e de massas, entendendo-as como complementares e identificando as mais adequadas para cada momento histórico, sem perder a perspectiva de que tanto a luta ideológica como a luta institucional devem estar subordinadas à luta de massas, que é a forma de luta que tem condições de alterar a correlação de forças na sociedade.
Precisamos travar a batalha das ideias e denunciar este modelo de mercantilização e concentração privada das vacinas, apontando as alternativas concretas que estão sendo desenvolvidas, em especial pelos governos socialistas, para enfrentar os problemas da pandemia e seus desdobramentos futuros. Nisso destacamos o papel central que deve cumprir a comunicação e a cultura, como ferramentas de disputa ideológica e politização da sociedade.
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Ao mesmo tempo, temos que somar esforços nas iniciativas dos governos comprometidos com a vacinação como direito humanitário e nas árduas lutas institucionais a serem travadas nos organismos multilaterais, em especial na ONU), na OMS e na OMC.
É preciso que esses organismos assumam a sua responsabilidade diante desse cenário de explícita desigualdade na aquisição das vacinas. Mesmo estando cientes dos limites desses órgãos, é fundamental que ampliemos a pressão sobre eles.
E, ainda, é tarefa central estimular, mobilizar e contribuir com iniciativas que ajudem no processo de organização da classe trabalhadora, nos distintos territórios onde ela se encontra. Só assim estaremos melhor posicionados para que, quando as condições sanitárias permitirem, possamos ter capacidade de convocatória para as lutas sociais massivas.
A construção de força social, através do trabalho de base paciente e permanente, adaptando as formas à realidade concreta que temos, é tarefa urgente. Não podemos ter qualquer tipo de atitude passiva e abstencionista diante desse cenário trágico.
Em segundo lugar, devemos ampliar a articulação internacional entre as mais diversas redes de movimentos populares, entidades sindicais, organizações e lideranças políticas, religiosas, intelectuais, artistas, juristas, cientistas, etc. Buscando sempre, a partir dessa ampla diversidade, a unidade de ação anti-imperialista em defesa da vacina como um bem da humanidade.
É importante destacar que só teremos capacidade de impactar o tabuleiro político internacional e a sociedade no geral se tivermos força política e social para que essa bandeira tome a centralidade que necessita.
Isso só se dará na medida em que tenhamos condições de coordenar os esforços em torno de um plano de lutas comum, tendo como princípio a unidade na diversidade, somando também nesse processo os governos dos países socialistas, os governos democrático-populares e governos progressistas do mundo todo.
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Terceiro, devemos dar continuidade ao processo de construção de uma plataforma emergencial que contribua na coesão das forças políticas internacionalmente em torno de um plano de lutas comum dos povos do mundo para enfrentar as questões concretas da pandemia, que também sinalize à reconstrução do mundo pós-pandêmico, a partir das necessidades objetivas dos mais afetados pela crise profunda que vive o sistema capitalista, acelerada pela pandemia.
Alguns elementos iniciais do que seria esta plataforma emergencial estão sistematizados no Manifesto Internacional pela Vida, mas precisam ser aprofundados, identificando quais são os pontos centrais que dão condições para a unidade de ação no plano internacional.
O problema da vacina está umbilicalmente conectado à questão da fome, do desemprego, das dívidas e bloqueios criminosos, ao nível econômico, financeiro e comercial, impostas pelo imperialismo estadunidense e seus aliados aos países do Sul Global.
A identificação dos apartheids sanitário, alimentar e financeiro nos ajuda muito na construção de uma síntese inicial que estruturam esse plano de ação e mobilização em torno de temas candentes a serem enfrentados conjuntamente desde agora.
Diante de uma pandemia que impõe-se como um problema para os povos de todo o mundo, para que possamos avançar na luta pela vacina como bem comum da humanidade, um elemento é fundamental: o valor da Solidariedade Internacionalista.
Ou seja, é somente combinando as diferentes formas de luta, ampliando a articulação política internacional da classe trabalhadora e dos povos do mundo em torno de uma plataforma emergencial, acumulando força entre nós, que poderemos avançar na construção de uma estratégia comum para enfrentar o inimigo número um da humanidade: o Imperialismo.
*Giovani del Prete é militante internacionalista, bacharel em Relações Internacionais e mestrando em Economia Política Mundial pela UFABC
**Rodrigo Suñe é militante do Levante Popular da Juventude
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
FONTE: BRASIL DE FATO
FOTO: Cole Burston/AFP