“Encruzilhada decisiva”: o que o clima do planeta tem a ver com a pandemia?

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Especialistas temem que a corrida pela recuperação econômica ignore a sustentabilidade – o que levaria o mundo a mais tragédias futuras

Especialistas temem que a corrida pela recuperação econômica ignore a sustentabilidade – o que levaria o mundo a mais tragédias futuras

O clima lá fora não é dos melhores, mas há quem repare em céus mais limpos. Não é só por aqui: imagens de raros canais transparentes na turística Veneza, na Itália, e volta de tartarugas marinhas raras que conseguiram se reproduzir em praias da Tailândia são bons exemplos sobre como o impacto humano no meio ambiente poderia ser diferente caso houvesse conscientização sobre o uso dos recursos naturais, correto?

Não tão rápido. Mesmo com exemplos pontuais ou previsões de quedas históricas na emissão de carbono devido ao confinamento, especialistas temem que o mundo pós-pandemia encontre nas soluções mais poluidoras a saída para o entrave econômico que o coronavírus trouxe para um mundo, e a superficial consciência solidária e ecológica gerada pelo #FiqueEmCasa se esvaia.

Pode parecer um assunto para depois, mas o acompanhamento das emissões e da qualidade do ar, no aspecto regional, está diretamente relacionado ao sistema de saúde das cidades – sobrecarregado por conta dos pacientes com covid-19.

O climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), uma das referências mundiais na pesquisa sobre as mudanças climáticas, explica que em São Paulo, por exemplo, está para entrar no seu período de secas do inverno – o que agrava problemas respiratórios crônicos, como bronquite e asma, comorbidades perigosas no contexto da pandemia. Analisar ao nível de poluição do ar da metrópole seria avisar o poder público de que mais problemas podem vir caso haja uma flexibilização inconsequente da quarentena.

“A continuidade do confinamento e uma efetiva diminuição da circulação de veículos vai manter níveis de poluição do ar mais baixas, diminuindo o número de pessoas tendo crises asmáticas e de doenças respiratórias. Isso não somente diminui a saturação dos hospitais, mas principalmente diminui o próprio risco de pessoas com tais problemas serem infectadas pela covid-19”, explica Nobre.

Na análise de pandemia e clima, o pesquisador afirma que, no momento, os cientistas se debruçam sobre a queda generalizada da emissão de gases de efeito estufa no mundo – em especial o dióxido de carbono (CO2).

“Há estimativas que este ano globalmente as emissões serão reduzidas em 8% em relação ao ano de 2019. Para o Brasil, a queda de emissão de CO2 pode ser até maior, uma vez que o setor de transportes (principalmente queima de óleo diesel e gasolina) corresponde a mais da metade de todas as emissões deste setor.”, analisa Nobre.

Se o confinamento traz impactos visíveis em um tempo relativamente curto, o seu oposto também ajuda a explicar como que as alterações nas paisagens visíveis e nos indicadores de emissões de gases invisíveis mudam a dinâmica da vida no planeta. Isso, por si só, nos aproxima da explicação sobre a origem de pandemias como a do coronavírus.

NA ESQUERDA, CANAIS DE VENEZA APARECEM TRANSLÚCIDOS APÓS CIDADE ENTRAR EM QUARENTENA. SEGUNDO ESPECIALISTAS, O LODO DO GRANDE CANAL DE VENEZA ASSENTOU COM A MENOR MOVIMENTAÇÃO DE BARCOS. NA DIREITA, TARTARUGAS MARINHAS RARAS SE REPRODUZIRAM NATURALMENTE NA TAILÂNDIA – ALGO IMPENSÁVEL COM A PRESENÇA DE TURISTAS (FOTOS: ANDREA PATTATO/AFP E MAI THAO MARINE FOUNDATION/FACEBOOK)

Quem traça o cenário é o pesquisador em ecologia e evolução e professor doutor no instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Mathias Mistretta.

“Essa pandemia, como todas as outras doenças infecciosas que assolaram a humanidade, têm origem zoonótica – isto é, são patógenos de outros animais. À medida que os ambientes naturais são modificados e substituídos por outras formas de uso da terra, amplia-se o contato com animais silvestres, enquanto outros acabam se aproximando dos ambientes urbanos, o que também aumenta as chances de transmissão de alguma doença.”, explica o ecólogo.

Tal compreensão tem sido abordada com frequência pelos cientistas quando eles tentam explicar a origem da pandemia. Mesmo assim, entender que o uso exploratório da terra por meio dos latifúndios do agronegócio ou a queima de combustíveis fósseis constituem os verdadeiros inimigos não se tornou mais simples com a reclusão em casa.

Na visão da pesquisadora em sociologia ambiental Sabrina Fernandes, uma perspectiva de vida com preceitos sustentáveis ainda está longe de ser unanimidade, mesmo com exemplos práticos da interferência predatória na natureza em tempos de coronavírus.

“É possível que algumas pessoas reflitam sobre o impacto da vida ‘normal’, mas como o contexto é de crise, a tendência é que logo o apelo para recuperar a economia e retomar atividades nas cidades atropele a maior parte dessa consciência adquirida.”, analisa.

É o que aponta uma triste realidade, localizada às margens do Rio Doce – morto pela lama da mineração após o rompimento da barragem de Mariana (MG), em 2015. Lá, 130 famílias “estão isoladas há quatro anos”, apesar de encararem, agora, o perigo extra do inimigo externo.

Quem define essa situação é o ambientalista e escritor Ailton Krenak, uma das maiores lideranças indígenas no Brasil. Krenak analisa que a pandemia é fator inédito, mas falsas promessas de uma nova consciência após uma tragédia constam do século passado. O mundo pós-pandêmico, para ele, não promete ser muito diferente do que já provou ser.

“Eu estou completando dois meses em uma quarentena na aldeia Krenak, nas margens do Rio Doce, o rio que foi flagelado pela lama da Samarco. Nós somos abastecidos por caminhão-pipa e supridos por cestas básicas. Você pode ver que o mundo não está nem aí. Quem veio aqui socorrer as comunidades ribeirinhas depois da Vale? Quantos acionistas da Vale mandaram grana para cá? É na prática que a gente testa essa conversa fiada de solidariedade.”.

Recuperação verde?

Apesar dos maus agouros colhidos na história, autoridades europeias e chinesas realizaram uma cúpula climática online no fim de abril para cobrar que os países signatários do Acordo de Paris, firmado na COP-21 em 2015, respeitem o compromisso de buscar por um “desenvolvimento verde” na recuperação econômica de seus países.

“Haverá um debate difícil sobre a alocação de fundos. Mas é importante que os programas de recuperação estejam sempre de olho no clima. Não devemos deixar de lado o clima, mas sim investir em tecnologias climáticas”, disse Angela Merkel, chanceler alemã, na conferência online com a mediação das Nações Unidas.

No entanto, sobra ceticismo ao se tratar do assunto – especialmente em relação a nações com líderes negacionistas da emergência climática. Nessa lista, estão o presidente americano Donald Trump e, claro, Jair Bolsonaro.

No Brasil, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sequer esperou pelo fim da pandemia para assinar decretos que colocam a Amazônia e a Mata Atlântica em perigo, entregando áreas para grileiros. Os avisos de desmatamento recorde na Amazônia no primeiro trimestre do ano são as primeiras marcas de “cicatrizes muito mais duradouras” para uma perspectiva sustentável, diz Mathias Mistretta.

Os alertas indicam que 2020 pode ser um ano ainda pior em termos de desmatamento e, possivelmente, de incêndios. Uma hora a pandemia vai ser superada, apesar dos traumas, mas algumas cicatrizes são muito mais duradouras, pois ambientes naturais como as florestas não se recuperam de uma hora para a outra.”, opina Mathias Mistretta.

Na visão de Carlos Nobre, que estuda a biodiversidade da Amazônia ao longo de toda sua carreira, o mundo todo encontra-se diante de uma “encruzilhada decisiva”. Assim, enveredar pela destruição das florestas e biodiversidade e pela emissão de mais gases poluentes pode nos levar ao mesmo ponto da suposta “nova largada”.

(FOTO: FELIPE WERNECK/IBAMA)

“Não tenho dúvida que a crise climática, se não contida urgentemente, trará desafios incomensuráveis a todas as sociedades humanas por séculos a vir. Traz riscos, inclusive, de modificar o equilíbrio ecológico de inúmeros ecossistemas, principalmente as florestas tropicais, o permafrost, entre outros, expondo muito mais a raça humana ao contato com patógenos que fariam surgir pandemias.”, explica.

Nobre destaca que essa mudança passa, também, pela criação de “condições plenas de saúde e educação” para todos – um desafio que, para Sabrina Fernandes, carrega um teor pessimista sobre adquirir, de fato, uma consciência climática em face da desigualdade e pobreza.

“Algo que nós sempre enfatizamos na proposta ecossocialista é que o objetivo deve ser reconciliar a sociedade humana com a natureza, mas essa é uma tarefa difícil, porque essa reconciliação não é mera questão de vontade para a maioria. Vejamos as periferias das grandes cidades do Brasil: a poluição local é um problema da estrutura desigual de saneamento e planejamento urbano inadequado ou nulo.”, diz.

Apesar de descrente de um movimento sério de solidariedade ambientalista, Ailton Krenak acredita que o pós-pandemia irá colocar à prova o quanto que céus mais azuis, canais turísticos translúcidos e bebês tartaruga sensibilizaram, de fato, um mundo anestesiado pelo coronavírus.

“Se o mundo sair acelerando com ideia de recuperar o que perdeu, seria a constatação de que a mortandade que está havendo no planeta não tocou a sensibilidade desse mundo que nós vivemos e insistem em chamar de humanidade.”

FONTE: CARTA CAPITAL
FOTO:  CHARLY TRIBALLEAU / AFP

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